A chegada de um bebé (sobretudo um primeiro) desencadeia uma série de revoluções na vida de uma família, que vão desde questões incrivelmente complexas (como educar uma criança) até outras aparentemente simples e naturais (sono e alimentação).
Deste lado, a parentalidade fez-nos inclusivamente repensar a forma como cozinhamos e comemos, a começar por uma decisão aparentemente irrelevante para esta newsletter: comprar um microondas. Vivemos muitos anos sem um, recorrendo a panelas para cozer a vapor ou ao forno eléctrico para os usos mais típicos do microondas. Com o nascimento da Alice, sentimos a necessidade de aquecer comida em casa de forma mais rápida, para nos facilitar a vida no dia-a-dia.
Queríamos, ainda assim, limitar o impacto ambiental desta decisão. Dada a omnipresença dos microondas nas casas portuguesas, deduzimos que não seria difícil encontrar um em segunda mão. Assim foi. Passados 18 meses, podemos dizer que foi uma das melhores decisões que tomámos.
Vale a pena dizer que durante muito tempo fizemos parte daquela fatia da população que se opõe com convicção ao uso do microondas enquanto aparelho quase alienígena que confecciona a nossa comida de forma pouco natural. Nunca fomos negacionistas da sua utilidade, apenas muito reticentes quanto ao seu lugar numa cozinha onde se privilegia a preparação de refeições de raiz e não tanto o aquecimento de comida pré-cozinhada, pronta a consumir.
Além da Alice, o que nos fez mudar de ideias foi explorar mais a fundo os mitos à volta do microondas e a ciência que comprova a sua falta de sustento. E assim recuperámos hábitos passados por uma das nossas mães, como o arroz cozido (na perfeição) no microondas – sim, leste bem (já voltamos a este assunto mais à frente).
Mais do que isto, a evolução da nossa relação com o microondas fez-nos lançar uma questão mais profunda: quais as formas mais sustentáveis de cozinhar? Será o microondas uma delas?
Talvez nunca tenhas lido ou ouvido a história de como o microondas foi inventado. O crédito vai para o físico Percy Spencer. Reza (um)a lenda que em 1945, ao trabalhar em sistemas de radar navais, Spencer apercebeu-se de que a barra de chocolate e amendoim que tinha no bolso tinha derretido. Outras lendas semelhantes falam em ovos que explodiram ou uma sandes que deixada no sítio errado (ou certo, conforme a perspectiva) se transformou em tosta. Um dia mais tarde os colegas de Spencer deram cabo destas fantasias ao explicar que foi um trabalho continuo de observações metódicas que deu origem a esta descoberta. Nada de chocolate nem ovos nem sandes, portanto.
As microondas fazem parte de uma família de ondas electromagnéticas, tal como os raios-x ou as ondas de rádio. As diferenças entre si dizem sobretudo respeito ao volume de energia que contêm. No caso das microondas, esse nível é bastante baixo – apenas o suficiente para aquecer os alimentos. E de que forma acontece o aquecimento? Através da água. Estas microondas fazem vibrar as moléculas de água, e essa vibração gera a energia que por sua vez aquece o alimento.
Está aqui uma das maiores vantagens do microondas: aquece apenas o alimento e não o ar à sua volta. É por isso que não te queimas se puseres a mão dentro de um microondas quando acaba de aquecer/cozinhar, por contraste com um forno a altas temperaturas. O forno aquece em primeiro lugar o ar, e esse calor acaba eventualmente por penetrar o alimento em si.
Um problema de reputação
Ainda assim, a conversa em torno da legitimidade do microondas tem estado contaminada pela divulgação de um estudo da Universidade de Manchester em 2018. O problema não está na investigação propriamente dita. Está, sim, na forma como o conhecimento foi transmitido. Basta olhar para o título escolhido pela própria universidade:
Microwaves could be as bad for the environment as millions of cars suggests new research
A ideia fez eco um pouco por todo o lado nos media, que se centrou nesse isco sem dar a devida atenção às letras mais pequeninas. Sim, os microondas têm um grande impacto, que vem sobretudo da sua utilização de energia. E, sim, aqueles que têm um relógio digital gastam energia mesmo em stand-by (seria sempre melhor desligá-los da corrente, nesse caso).
Mas o estudo também diz que em média um microondas gasta 573 kWh (kilowatts/hora) ao longo de oito anos (a sua esperança média de vida), o equivalente a uma lâmpada LED de 7 watts ligada continuamente durante quase nove anos. Vendo as coisas desta perspectiva, até é um consumo bastante baixo. O que o estudo pretendia mostrar era o impacto cumulativo dos mais de 130 milhões de microondas – todos juntos – actualmente a uso na União Europeia (+ Reino Unido) e com isso apelar a uma aposta no aumento da sua eficiência energética.
Os impactos mitológicos do microondas
Os danos reputacionais fizeram-se sentir, com os media a surfar esta onda de aparente insustentabilidade do microondas. Esta ideia veio juntar-se aos supostos perigos associados à sua utilização. Uma dúvida, em particular, tem sobrevivido ao longo das décadas: serão os microondas radioactivos?
Há dois tipos de radiação: ionizante e não ionizante. Na primeira categoria estão os raios-x, raios gama e alguns raios ultravioleta. Todos eles têm ondas de frequência elevada, e são de facto radioactivos. As microondas são ondas de baixa frequência, inofensivas quando usadas por aparelho como aquele que a maioria de nós tem em casa.
Destruído o primeiro mito, vamos ao segundo: o microondas destrói os nutrientes dos alimentos? A resposta é 'sim', mas também o é para qualquer outro método de confecção que utilize calor – desde cozer a vapor até assar no forno, todas estas formas de cozinhar levam a uma degradação nutricional (da maioria) dos alimentos. É, sim, mito que o microondas seja uma pior opção do ponto de vista nutricional.
Aliás, vários estudos já provaram que há uma maior retenção de micronutrientes em vegetais cozinhados no microondas por comparação com os mesmos vegetais cozidos a vapor ou fervidos em água. Um exemplo estudado na Universidade de Cornell, nos EUA, foi o do espinafre: preparado no microondas reteve quase na totalidade o seu teor de ácido fólico; cozido no fogão perdeu 77%.
A explicação é simples: para reter a maior quantidade de nutrientes importa cozinhar um alimento depressa, aquecê-lo o mais rapidamente possível e usar a menor quantidade de líquido necessária. E o microondas faz exactamente isso, cozinhando o alimento a partir da água que contém.
E a revelação: afinal devemos usar mais o microondas para combater as alterações climáticas?
Falemos então de sustentabilidade, mais concretamente de emissões de gases com efeito de estufa. Se acompanhas a nossa newsletter há algum tempo, sabes que falamos regularmente sobre o impacto daquilo que comemos (mais até do que a sua origem). Já deixámos várias vezes a mensagem de que é preciso reduzir a frequência e a quantidade de produtos de origem animal. Até agora pouco ou nada tínhamos falado sobre a influência da forma como cozinhamos aquilo que comemos.
É altura de trazer para o centro da discussão Christian Reynolds, investigador da City, University of London, que tem dedicado parte do seu trabalho a estudar os impactos ambientais dos nossos hábitos de preparação de refeições.
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