O Burger King abriu uma loja em Lisboa só com produtos 100% vegetais. Aqui não há hambúrgueres de vaca ou de frango, apenas alternativas feitas à base de plantas. Há três anos que esta cadeia de fast food criou uma parceria com o The Vegetarian Butcher, que começou por ser uma empreitada de um só holandês e hoje está nas mãos da gigante Unilever.
Feitos sobretudo à base de soja, os produtos deste talho vegetariano são um mero exemplo num sector que galopou ao longo da última década (em particular os últimos cinco anos) para responder à procura crescente por opções para quem quer comer menos carne.
Hoje em dia a mais conhecida do pelotão talvez seja a Beyond Meat, que já ganhou espaço no carrinho de compras de muitos portugueses e no menu de muitos restaurantes – até no maior rival do Burger King, que por cá já vende o McPlant (que só se torna apto para veganos ao remover o queijo e a maionese).
Com a urgência na redução do impacto ambiental do sistema alimentar (do qual a pecuária é a principal responsável) e a tomada de consciência dos consumidores, estas empresas estariam destinadas ao sucesso garantido. No entanto, esse caminho está longe de ser linear, como provam as notícias mais recentes sobre a Beyond Meat, que anunciou o despedimento de 19% dos seus trabalhadores (cerca de 200 pessoas). Aparentemente foi a única forma encontrada para equilibrar as contas, depois de uma quebra na procura pelos seus produtos nos últimos meses.
A apreensão quanto ao presente e ao futuro da empresa nota-se no seu valor de mercado: em Julho do ano passado, uma acção valia 150 dólares; hoje não ultrapassa os 12 dólares. A conjuntura económica está a dificultar a vida a empresas como a Beyond Meat, que estão a sofrer as consequências da inflação, em particular nas escolhas dos consumidores.
Mais do que vegetarianos ou veganos, estes produtos são pensados para atrair os tais reducionistas do consumo de carne. Com a pressão da subida dos preços na carteira, muitos consumidores regressam a hábitos antigos (mais baratos), seja a própria carne ou alimentos mais simples de base vegetal, como as leguminosas.
Há quem defenda que estas fake meats são uma solução transitória num duplo sentido. Por um lado, ajudam quem pretende efectivamente deixar de comer carne a fazer uma mudança mais suave; por outro, preenchem esse espaço nas preferências dos consumidores que querem continuar a comer carne, mas com menos culpa ética e ambiental, apenas até a carne de laboratório se tornar verdadeiramente massificada.
Mas será disparatado dar um passo atrás e perguntar:
E se a solução para uma alimentação mais sustentável estiver mesmo nas leguminosas?
Há um contraste enorme entre o real valor (nutricional e ambiental) das leguminosas e a percepção do seu lugar na cadeia alimentar. Num estudo recente da Universidade Católica Portuguesa uma fatia ainda assim expressiva dos inquiridos diz não comer leguminosas mais regularmente porque estão conotadas como "alimento para pobres".
A ideia persiste no imaginário de muitos por contraste com a suposta nobreza dos produtos de origem animal – carne, peixe, ovos, lacticínios. Esta dicotomia acentua-se sobretudo a partir dos anos 50, quando no pós-guerra ocorrem diversas transformações em Portugal. Ao êxodo da população rural (tanto para as cidades, como para o estrangeiro) junta-se um desinteresse da parte dos produtores, que deixam de ver nas leguminosas um produto merecedor do seu trabalho. E porquê?
Tinham aparecido os adubos químicos.
As leguminosas têm um papel predominante num sistema agrícola mais sustentável. Trazem consigo o grande benefício de fixarem azoto atmosférico, enriquecendo o solo. Fazem isso através de uma relação simbiótica com bactérias, algo que mais nenhum tipo de cultura consegue fazer. É esta característica que a adopção dos fertilizantes de síntese veio substituir em grande medida.
Na década de 80, Portugal ainda assegurava a produção de mais de 75% das leguminosas de que precisava. Hoje em dia, estamos nos 18,6%. A dependência da importação é mais gritante do que nunca, deixando o país ainda mais vulnerável a variáveis que não consegue controlar, como temos visto com a pandemia e a guerra na Ucrânia. É claro que a responsabilidade desta inversão também está na entrada na CEE, em 1986, e nas directrizes comunitárias que daí vieram desde então.
Abandonámos a produção, mas não podemos ignorar a ciência. As leguminosas fazem parte de todas as recomendações para uma dieta mais saudável e sustentável. A título de exemplo, um hambúrguer à base de feijão, ervilha, grão-de-bico ou lentilhas reduz em 81%-87% o impacto nas alterações climáticas por comparação com o tradicional hambúrguer de carne de vaca.
Como não dar gás aos mitos
As leguminosas são imunes a praticamente todas as discussões sobre regimes alimentares, dado o seu perfil nutricional. São ricas em hidratos de carbono complexos (e em fibras), proteína, diversos micronutrientes (ferro, folato, zinco, magnésio, potássio, fósforo, cálcio, etc.) e antioxidantes. Uma maravilha da nutrição, portanto, contribuindo para a prevenção de doenças cardiovasculares e promovendo a nossa longevidade.
E no entanto continuamos a olhá-las com desdém. Não só são alimento de pobre, como a má reputação se estende a outros argumentos: a flatulência e o ganho de peso. Já voltaremos ao primeiro, para já falemos do segundo. A visão distorcida deve-se em grande medida àquilo que consumimos a par das leguminosas. Numa feijoada carregada de enchidos e que comemos em porções excessivas, será mesmo o desgraçado do feijão a fazer-nos engordar? Também já ouvimos queixas parecidas sobre o tremoço, que não tem culpa de ser empurrado pela garganta abaixo por um copo de cerveja enquanto se vê futebol ou conversa com o amigos.
Na realidade, as leguminosas fazem quase o oposto de engordar. Dado o teor de fibra e a saciedade que proporcionam, previnem uma ingestão excessiva de alimentos, regulando o apetite.
Recuperando o trabalho da equipa da Universidade Católica, é interessante ver a evolução entre os dois questionários realizados (um em 2014, outro em 2020). As investigadoras concluíram que há um número crescente de portugueses predispostos a fazer das leguminosas uma fonte proteica principal (passou de 19,9% em 2014 para 31,7% em 2020).
A amostra não é representativa da população nacional no seu todo (há, por exemplo, uma predominância de mulheres – 74,1%) e há discrepâncias grandes entre os participantes do primeiro inquérito e os do segundo (por exemplo, a idade). Em todo o caso, o estudo dá-nos pistas quanto ao que sabemos sobre leguminosas e de que forma estamos ou não a dar-lhes a devida atenção.
Um quarto dos inquiridos não conhece as vantagens do consumo de leguminosas para a saúde. E perto de metade desconhece os benefícios ambientais da sua produção e do seu consumo. Mas a principal justificação para não consumirem mais regularmente está mesmo no desconforto intestinal, apontado por um terço dos participantes no estudo.
Há uma razão para isso. As leguminosas contêm rafinose e estaquiose, compostos que o nosso corpo não consegue digerir e que ficam no nosso intestino à disposição as bactérias, que fazem deles um petisco. Com a fermentação desencadeada por estas bactérias dá-se a formação de gases (incluindo dióxido de carbono e metano), que podem então gerar algum desconforto gastrointestinal.
Na maior parte dos casos, o consumo regular de leguminosas ajuda a que o organismo se adapte e que estes sinais desapareçam. Se for o teu caso, podes começar por quantidades mais pequenas (por exemplo, duas colheres de sopa por dia) e ir aumentando à medida que ficas mais confortável. Além desta introdução gradual, também ajudará incorporar as leguminosas em pratos mais leves, ao invés de feijoadas e ensopados (sobretudo com carnes e mais gordura adicionada) que possam ser mais difíceis de digerir.
Além disso, é muito importante prepará-las devidamente. Aqui destacamos a relevância da demolha, no caso das leguminosas secas. Este passo ajuda não só à reidratação, mas também à redução do teor de antinutrientes – substâncias que comprometem a absorção de alguns nutrientes.
Há quem jure a pés juntos por um precioso aliado ao combate à flatulência: a alga kombu. A explicação é simples: a kombu contém alfa-galactosidase, a enzima que falta ao nosso organismo para digerir os tais compostos que as bactérias petiscam. Os antigos diziam alcançar o mesmo objectivo com um raminho de salsa, e noutras geografias há também referências ao gengibre e aos cominhos como alternativas à kombu.
A propósito, sabes porque é que quase todo o tremoço que vês à venda está em salmoura? No seu estado natural contém alcalóides neurotóxicos, que podem provocar náuseas, vómitos e uma série de outras reacções adversas no nosso organismo. Para contornar isso, é importante cozê-los e depois demolhá-los durante vários dias, mudando a água diariamente, até perderem a amargura.
Antigamente era comum pôr os tremoços em redes, que depois eram mergulhadas em água corrente (um ribeiro ou um rio, por exemplo) até estarem prontos a consumir. A salmoura é a opção mais conveniente para tê-los prontos a comer, embora traga outro problema – o excesso de sal, que convém remover, passando o tremoço novamente por água ou demolhando por algumas horas.
Que quantidade devemos comer?
À luz da nossa Roda dos Alimentos, cujas recomendações pecam por conservadoras, devemos comer uma a duas porções de leguminosas por dia – uma porção equivale a uma colher de sopa de feijão seco (25 g) ou três colheres de sopa de feijão cozido (80 g). Logo ao lado, a categoria de 'carne, pescado e ovos' tem associada a recomendação de 1,5 a 4,5 porções por dia.
Num prato (ou numa alimentação) sem produtos de origem animal, o ideal será ocupar 1/4 do prato com leguminosas (outro quarto para cereais e tubérculos e metade para hortícolas crus e/ou cozinhados).
Com o mercado europeu a crescer mais de 27% nos últimos cinco anos, fica claro que as leguminosas estão a ganhar espaço no prato. Mas também à escala comunitária há um desfasamento entre a procura e a produção. Desde logo porque boa parte da produção dentro da União Europeia (53%) vai directamente para alimentar gado – 88% no caso da soja.
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