As notícias sobre a rede de tráfico de imigrantes no distrito de Beja são perturbadoras e devem fazer-nos, no mínimo, pensar bem na realidade escondida do nosso país. Se juntarmos a isso os relatos recentes das estufas de Odemira, temos matéria-prima suficiente para uma reflexão profunda.
Quando o assunto é escravatura moderna, é inevitável acabarmos a falar de cacau e chocolate. Bem sabemos que estamos em época natalícia, e que é uma época de paz e amor, mas vamos aproveitar a oportunidade para trazer para o centro da discussão um dos produtos que culturalmente mais associamos ao Natal.
Nos próximos dias é provável que dês por ti a comer ou a comprar chocolate para oferecer a alguém, por isso esperamos que esta newsletter te ajude a fazê-lo de forma mais consciente.
Só para garantir que estamos todos no mesmo pé, vale a pena começar por explicar que o chocolate é o resultado do processamento do cacau – mais concretamente dos grãos que estão dentro do fruto. Protegidos por uma polpa doce, esses grãos são em primeiro lugar fermentados (tradicionalmente em folhas de bananeira) para destruir a camada que protege a semente, matar o gérmen e conferir ao cacau um sabor agradável. Depois têm de secar ao sol, antes de serem transportados.
Apesar de ter surgido primeiro na América Central, a grande maioria da produção mundial de cacau está em África, em particular no Golfo da Guiné. Por si só, a Costa do Marfim é responsável por cerca de 40% do total. Se somarmos a esses números os do Gana, vizinho do lado, a quota de mercado ultrapassa os 60%. E mais a este estão outros dois países relevantes no sector – os Camarões e a Nigéria. No top 5 há um só país sul-americano: o Equador, em terceiro lugar.
Ao apontar a lupa ao que se passa na Costa do Marfim e no Gana, é difícil ficarmos indiferentes. São países que dependem em grande escala das exportações de cacau – representa 15% do PIB costa-marfinense e 2/3 de todo o emprego no país. Para milhões de famílias o cacau é a tábua de salvação para uma vida digna. Ou pelo menos deveria ser.
Na realidade, os produtores de cacau são o elo mais fraco de uma longa cadeia que inclui muitos actores e intermediários. Regra geral, os grãos de cacau são processados e transformados em chocolate já na Europa ou nos EUA. Da colheita até ao momento de prazer em que o chocolate derrete na tua boca, o cacau passa por muitas mãos. Cada uma fica com a sua fatia da receita, mas invariavelmente apenas uma ínfima parte fica no produtor.
O cacau é uma commodity. Ou seja, é um bem tratado como sendo homogéneo, independentemente da sua origem. Está sujeito a flutuações no preço de mercado global em função de variações na oferta e na procura. É comprado e vendido com base em contratos que prevêem a sua entrega ou disponibilização no futuro (tal como acontece, por exemplo, com o petróleo ou com o café).
Por norma, isso faz com que o preço seja imposto ao agricultor, que tem pouco poder negocial para exigir uma remuneração mais alta – no limite, o comprador tem muitas outras portas onde ir bater para obter o mesmo produto.
A exploração desta dinâmica até à exaustão tem levado todo o sector a bater no fundo. Como resultado, entre 73% e 90% dos agricultores na Costa do Marfim e no Gana não recebe sequer o equivalente ao rendimento mínimo. E mais de metade destes estará mesmo abaixo da linha de pobreza extrema.
Sem soluções, estas famílias vêem-se perante escolhas duríssimas. Como os pais não ganham o suficiente para sustentar, os filhos são afastados da escola e empurrados para situações de trabalho infantil – estima-se que sejam mais de 1,5 milhões de crianças nesta condição.
Ao mesmo tempo, a precariedade de todo o sector abre caminho a situações reais de escravatura moderna, que atingem pelo menos 30 mil pessoas na Costa do Marfim e no Gana. E o problema não é de agora. O mundo ficou a conhecê-lo pela primeira vez em maior profundidade em 2000, com um documentário da BBC que relatava, entre outros casos, a realidade das plantações de cacau na Costa do Marfim.
É sobre estes alicerces que toda a estrutura do negócio do chocolate se montou ao longo das décadas. Gigantes como a Mars, a Nestlé ou a Mondelez sustentam as suas operações em cacau que está manchado desde logo pelo desrespeito pelos direitos humanos.
Hoje em dia, o preço à saída da plantação ronda 1,25 a 1,35 dólares por quilo. Em bolsa, depois de passar por alguns dos intermediários, o valor já vai no dobro. E daí em diante continuam a ser feitas contas de somar, sem que isso favoreça de alguma forma o produtor.
Em 2019, os dois maiores países produtores de cacau decidiram agir. Costa do Marfim e Gana introduziram um sistema de preço fixo, que definiu um mínimo que assegurasse o sustento do produtor. A esta medida chamaram Living Income Differential (em português, algo como Diferencial do Rendimento Mínimo). O impacto fez-se sentir de imediato, com um aumento de cerca de 30% no rendimento (de alguns) dos agricultores.
O problema é que várias empresas recusaram (e ainda recusam) pagar esse extra, em vigor desde a campanha de 2020-21. Com a pandemia como justificação inicial, forçaram a mão para que houvesse um desconto no preço, o que se traduziu na anulação do tal rendimento adicional. Insatisfeitos, os responsáveis costa-marfinenses e ganeses prometeram revelar os nomes das marcas em questão caso a situação não fosse revertida. Até agora, isso ainda não aconteceu.
A outra catástrofe: desflorestação
Os custos sociais do chocolate que consumimos hoje em dia em grande escala são evidentes. E os ambientais não ficam atrás. Por aqui já escrevemos muito sobre o impacto do consumo de produtos de origem animal – e de como a sua pegada é exponencialmente superior à de praticamente todos os alimentos de origem vegetal. Ora, o chocolate é uma excepção.
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