Nos últimos dez dias, um bordão tem se tornado comum em redes sociais e carros de apoiadores do governo federal: "todo trabalho que sustenta uma família é essencial". Da maneira como esse meme coloca a questão, é como se sair às ruas e se expor ao vírus fosse uma espécie de privilégio que governos concedem a alguns trabalhadores e não a outros.
É lógico que não é bem assim.
Filtrei nos microdados do Caged de 2019 e 2020 o que se sabe sobre trabalhadores desligados de seus empregos porque morreram. Houve uma mudança de metodologia de um ano a outro, que afetou o número de contratações captadas. Num estudo mais aprofundado, poderíamos verificar se variou o número de desligamentos também. Por ora, vamos com este dado.
É bom lembrar que o Caged não sabe a causa da morte; sabe apenas que aquela morte encerrou um contrato formal de trabalho. Portanto, não podemos dizer que todas as mortes extra foram de Covid-19.
Este gráfico observa as 15 atividades com maior número de mortes, que também estão entre as que ocupam mais pessoas no país. Há alguns destaques a observar.
O setor de vigilância e segurança privada registrou 51% a mais de mortes que no ano anterior. Esse setor inclui as empresas que contratam quem fica na porta dos shoppings fazendo de conta que olha o termômetro. Alguns modelos medem dois graus a menos no pulso do que na testa, o que significa que não barram nem quem devia estar internado. Esses profissionais estão entre os que precisam chegar mais perto de quem vai ao shopping. Em abril do ano passado, a categoria já exigia obrigatoriedade de equipamento de proteção.
No transporte de cargas, que até ameaçou parar mas não parou, as mortes de trabalhadores aumentaram 46% em 2020 em relação a 2019. O setor fala em redução dos negócios durane a pandemia. Novamente, os desligamentos por morte refletem apenas os trabalhadores com carteira assinada, não só motoristas mas também os de depósito; não temos como saber o que houve com os caminhoneiros autônomos.
O aumento proporcional nesse setor foi mais alto até do que o registrado no atendimento hospitalar, de 42%. Os profissionais que trabalham em hospitais, da recepção à cirurgia, são os trabalhadores mais expostos à pandemia.
Na construção, que não parou - o ano de 2020 foi considerado "aquecido" -, as mortes aumentaram mais de um terço (36,25%). Foi um aumento pouco menor que o dos trabalhadores do transporte público (36,63%). Esses estão expostos de várias maneiras, especialmente em ônibus lotados e mal ventilados que acabam facilitando o contágio.
Mas veja só o setor de restaurantes e similares. Em várias cidades, a maioria deles passou muito tempo fechada, atendendo apenas com entregas ou precisando adotar medidas como o distanciamento maior das mesas. Ali, os desligamentos por morte aumentaram 13%, o que é bem pouco se comparado a outros setores. E olha que bares e restaurantes são considerados os lugares mais arriscados para transmissão.
Achei curioso o setor de criação de bovinos para corte: as mortes caíram 27%. Não conheço o setor o suficiente para saber o que fez essa queda ser registrada. Teríamos de olhar a diferença no volume de pessoas empregadas no setor, por exemplo, o que não é o objetivo desta newsletter hoje. As exportações de carne até aumentaram.
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Estamos no momento mais grave da pandemia até agora. O número diário de mortes é maior do que em qualquer semana de 2020. As UTIs estão lotadas, especialmente em algumas partes do país, e reportagem que publiquei em O Globo neste domingo mostra que 38% das pessoas que morreram de Covid neste ano não chegaram à UTI. Ou seja: morreram sem ter tido atendimento intensivo, o que provavelmente é muito doloroso. Colegas espalhados pelo Brasil recolheram casos muito tristes para essa reportagem.
Para muitos trabalhadores que ficaram sem renda devido às medidas de distanciamento social, é de fato brutal a escolha entre a probabilidade de talvez morrer daqui a um mês e a quase certeza de passar fome daqui a uma semana. Mas daí a tratar como privilégio já é um discurso um tanto quanto complicado, que na prática joga pobres contra pobres.
Não é exatamente um privilégio ganhar pouco e se arriscar. O ideal seria haver políticas públicas que garantissem renda para as pessoas que não puderam trabalhar ficarem em casa. Nos meses em que o auxílio emergencial esteve plenamente vigente, o contágio desacelerou. Privilegiados somos nós, que podemos trabalhar de casa. Se puder usar esse privilégio, use-o e evite ao máximo sair de casa. Se não puder, proteja-se da melhor maneira disponível.
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