Aqui em casa temos algumas restrições alimentares de longa, longuÃssima e curta data, e a cada uma nos adaptamos bem ao longo dos anos. Desde a infância sei que não posso comer açúcar por uma hipoglicemia crônica, industrializados por problemas digestivos também crônicos. Há muitos anos não consumimos derivados animais e mais recentemente meu companheiro descobriu uma alergia a farinha de trigo e algumas especiarias.
Conto isso porque nossa alimentação "restrita" (eu considero ela bem ampla, na verdade) por questões éticas e de saúde acabou caindo em uma categoria bem conhecida hoje em dia: a da comida fit. Procurando algumas dicas e receitas na internet fiquei surpresa com as chamadas de "comida fitness pra se livrar dos quilos a mais", e mais especialmente chocada com o onipresente "essa receita dá pra comer sem culpa". Culpa? Que culpa alguém deveria sentir por se alimentar?
Dessas receitas que encontrei por aÃ, muitas são incrÃveis e eu poderia falar sobre quão elas são realmente equilibradas e fazem bem à saúde, atendem a quem tem restrições alimentares, incentivam a pequena produção de agricultura familiar ou o quanto são saborosas. Mas a opção pelo discurso da culpa é unânime e tem apelo mais fácil - sem me dar conta, estava exposta a essa ideia o tempo inteiro.
Há alguns meses uma Lama que admiro disse que seu mestre a ensinou que meditação é tudo o que pensamos repetidamente: esses pensamentos reforçados diariamente em nossas mentes viram nossas crenças e hábitos mentais. Se eu ouço constantemente que há uma comida que dá pra comer sem culpa, é porque há a comida que se deve comer com culpa - ou pior ainda, nunca comer. Se eu não me questiono a respeito essa passa a ser a verdade que media minha relação com a alimentação. É a culpa, que não deveria nos acompanhar em nenhum momento, sentando até à mesa da refeição.
É claro que tem vezes que me arrependo do que comi, principalmente quando esse alimento me causa dor ou desconforto - ou uma crise hipoglicêmica assustadora. Mas procuro que esse arrependimento sirva para que eu perceba a decisão que eu tomei e avalie melhor da próxima vez. Me acolho na minha dor e me digo "ops, comer batata frita de noite me causa muito desconforto e piora meu sono, na próxima vou comer mais cedo, ou comer menos efusivamente" (quem nunca? rs). Essas avaliações não podem fazer com que eu tenha repulsa a alimentos, medo deles ou com que sinta uma culpa imensa toda vez que os consuma. Elas servem pra que eu aprenda a me relacionar melhor com eles.
Que além de livre de agrotóxicos, transgênicos e de substâncias que nos façam mal, nossos alimentos possam ser sempre livres de culpa - esse ingrediente está em nós. E, claro, façamos tudo isso com acompanhamento profissional qualificado e empático para que seja um caminho ainda mais gentil e incrÃvel de ser trilhado. O ato de comer é amplo e vai muito, muito além da culpa.
Com carinho,
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