Acreditamos no valor da informação e do conhecimento. Defendemos que todos temos o direito e o dever de saber como é que os nossos alimentos são produzidos e processados até chegarem até nós. Comemos tantas vezes ao longo da vida que às tantas pode parecer um acto banal, mas é muito mais do que isso.
Poucas alturas do ano trazem esta transcendência do acto de comer tão para cima da mesa quanto o Natal e – por extensão – a entrada no ano novo. É época de excepções, muitas vezes de excessos. É também um momento de paz, de celebração, de alegria, de reflexão, que em Portugal se faz quase sempre com a partilha de comida no centro das atenções.
Escolhemos por isso trazer-te um tema que sabemos que é sensível. Não o fazemos de ânimo leve, e muito menos com o objectivo de apontar o dedo – seja a ti ou a qualquer outro leitor desta newsletter. Queremos, sim, fazer uma reflexão honesta sobre uma tradição há muito enraizada e sobre o que se esconde por trás dela.
Hoje vamos falar de animais.
Por vir de um mundo à parte dos restantes, vamos deixar o bacalhau (e até o polvo, popular em algumas regiões) para outras núpcias – numa próxima edição olharemos com mais atenção para a pesca. Centremos por isso atenções nas outras estrelas da época: o leitão, o cabrito e o peru.
Há uma ironia (e uma contradição) evidente no facto de centrarmos a celebração de uma data ligada (pelo menos tradicionalmente) ao nascimento e à paz num acto que se baseia na morte de um outro ser – podemos chamar-lhe sacrifício, se assim preferires. E fazemo-lo com animais que são pouco mais do que bebés.
Em média, os leitões são abatidos 1 a 2 meses após o nascimento. A maioria dos cabritos não passa dos 2 meses. E os perus, com sorte, vivem até aos 5 meses. Por comparação, isto quer dizer que um leitão e um cabrito vivem menos de 1% da sua esperança média de vida à nascença, e que um peru não passará dos 5%.
Se transpuséssemos isto para nós próprios e para a esperança média de vida em Portugal, actualmente nos 80,7 anos, veríamos o nosso fim antes dos 10 meses (leitão e cabrito) ou até aos 4 anos de idade (peru). E se fizéssemos a mesma conta para os nossos cães ou gatos?
A discussão sobre o bem-estar animal na produção de carne é absolutamente essencial e ganha cada vez mais espaço – seja na legislação ou ao longo da cadeia, desde os produtores, passando pelo retalho e até aos consumidores. Fala-se muito sobre áreas mínimas para a criação de cada espécie, da alimentação, de hormonas e antibióticos e de muitos outros factores que influenciam o desenvolvimento de um animal.
Mas continuamos a ignorar o elefante na sala: a idade. Podemos falar com honestidade em bem-estar quando abatemos um animal que só viveu 1% do tempo que poderia vir a viver? E aqui não estamos sequer a entrar nas areias movediças das condições em que são criados. Falamos simplesmente em tempo de vida (digno ou não). Um por cento. Em boa verdade, importa dizer, as percentagens de tempo vivido não são muito mais simpáticas para o resto do sector da carne.
Enquanto preparávamos esta newsletter, pedimos a algumas pessoas que nos dessem o seu palpite quanto ao número anual de animais abatidos para consumo humano em Portugal. A maioria falou em um milhão ou dois milhões – não muito mais do que isso.
Em Portugal, só em 2018 foram abatidos 257 milhões de animais para consumo humano (dados da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária). Ou seja, cerca de 25 vezes a população do nosso país. Tendo em conta que os matadouros funcionam em média 251 dias por ano, dá uma média a rondar 1 milhão... por dia. Quase 90% desse total são frangos/galinhas.
O volume assusta e as (actuais e potenciais) repercussões também. Já muito escrevemos aqui sobre os impactos ambientais associados à produção de animais para consumo humano. Também realçámos o impacto de uma transição para dietas de base vegetal (mesmo que com consumo pontual de produtos de origem animal) e do peso da alimentação na nossa carteira. Mas, a par do bem-estar animal, há um outro aspecto a considerar: a nossa própria saúde.
Já ouviste falar em zoonoses?
Hoje em dia, 75% de todas as doenças infecciosas emergentes em humanos vieram originalmente de animais. A esse contágio chamamos zoonose. A provável origem da COVID-19 em morcegos é a prova mais viva que temos nas nossas memórias, mas há muito mais exemplos. O vírus da SIDA (com origem em primatas) ou o ébola são outros casos de um processo de transmissão idêntico (de outros animais para humanos).
Com a pressão das alterações climáticas e a intensificação da agricultura, há um risco crescente de estas doenças ganharem dimensão.
Susana Paixão, professora do Instituto Politécnico de Coimbra e presidente da Federação Internacional de Saúde Ambiental, dizia assim ao "Público" em Abril: “O desmatamento de zonas biodiversas, o consumo de espécies selvagens e a redução da biodiversidade vai trazer para junto de nós vírus que sempre existiram, mas que nunca estiveram tão perto de nós. Esta barreira de fauna e flora está a ser eliminada por um constante abate de árvores para dar espaço à agricultura e para servir este nosso modelo de alimentação muito ancorado na proteína animal. Todo este cenário está a aproximar determinados microrganismos [patológicos] do homem, temos de estar preparados para novas pandemias”
Os cientistas estão particularmente preocupados com a gripe das aves. Desde as primeiras infecções detectadas em humanos, ainda em 1997, no território de Hong Kong, já muito se disse e escreveu sobre estes vírus – um parente afastado da nossa gripe comum – inclusive em Portugal.
Tal como na nossa gripe sazonal (e na COVID-19), a transmissão acontece essencialmente através do ar. Sabe-se que afecta todo o tipo de espécies de aves, o que já está a criar uma crise de biodiversidade, embora as aves domésticas e de capoeira (ou seja, aquelas que são usadas para produção de carne ou ovos) sejam de longe o grupo mais vulnerável.
O tema andou nas notícias de forma mais ou menos intermitente sobretudo ao longo da última década, mas agora regressou à agenda mediática em maior força. Porquê?
Desde o fim do ano passado que o número de casos está a aumentar. A distribuição geográfica está a alargar-se. Neste mapa interactivo podes acompanhar a evolução do vírus na Europa, com os casos identificados ao longo do tempo.
Por agora, o número de infecções em humanos continua a ser residual, mas as autoridades de saúde pública estão apreensivas. No seu mais recente relatório sobre o tema, a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) sublinha que, a par dos casos em humanos, a transmissão do vírus a mamíferos selvagens reforça a ideia de que há uma possibilidade real de uma mutação no vírus que o torne capaz de provocar doença em humanos. No limite, isso poderia levar-nos a uma nova pandemia.
Olhando para o número de infecções em humanos ao longo dos anos, num total de 866, sobressai em todo o caso a elevada taxa de mortalidade: 52,8%.
Há um animal em particular que pode funcionar como intermediário neste processo: o porco. Sendo sensíveis tanto ao vírus da gripe humana como ao da gripe das aves, os suínos têm a capacidade de baralhar e voltar a dar as cartas genéticas. O mesmo é dizer que podem fazer a ponte entre aves e humanos na transmissão (de uma nova forma) do vírus.
Este ano foram apenas detectados cinco casos de gripe das aves em humanos: um nos Estados Unidos da América, um no Reino Unido, outro na China e, mais relevante para nós, dois em Espanha. Os especialistas do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) asseguram que, para já, há um risco baixo de transmissão a humanos (de uma forma geral) e baixo a médio para pessoas expostas a animais potencialmente contaminados – ou seja, aqueles que trabalham em explorações de aves.
Os focos actuais de gripe das aves acontecem na sua grande maioria em explorações intensivas de aves de capoeira. Da experiência com a COVID-19, sabemos que a melhor ferramenta de prevenção é o distanciamento social, a par do uso de máscara. Ora, em aves criadas em espaços muito reduzidos, o distanciamento é pura e simplesmente uma impossibilidade. E o uso de máscara em galinhas fica para a imaginação de cada um.
E o que acontece quando uma ave é infectada?
A regra é o abate, feito o mais rapidamente possível para evitar impactos maiores. E isso faz-se não apenas com as aves doentes, mas com todas as que possam estar em contacto, mesmo que completamente saudáveis. É uma medida de prevenção, tomada com base no princípio de que há um elevado nível de contágio entre aves.
Como resultado desta prática, estima-se que nos últimos 12 meses mais de 140 milhões de aves tenham sido abatidas na sequência de casos de gripe das aves. Só na na Europa o número ronda os 48 milhões.
Um dos países mais afectados é Itália. A Essere Animali, organização de defesa dos direitos dos animais, filmou o abate de mais de 300 mil galinhas e frangos numa quinta na região de Veneto – o coração da produção italiana de aves. O método usado para o efeito é perturbador.
As aves são despejadas em contentores marítimos por uma retroescavadora. À medida que isso acontece, as que ficam por baixo vão sendo esmagadas pelas que chegam a seguir. Quando está cheio até cima, o contentor é selado e é libertado um gás que mata os animais ao fim de algum tempo, depois de vários minutos de agonia. Aqui podes ver o vídeo e ler mais sobre este caso [nota: o vídeo pode chocar os mais sensíveis]. Qualquer semelhança com câmaras de gás em campos de concentração nazi (não) é mera coincidência.
Em Portugal, a produção de carne não garante um autoprovisionamento a 100% – está nos 81,6% em termos gerais, e em 89,7% nos animais de capoeira. Em épocas de maior procura, como é o caso do Natal, há uma necessidade evidente de recorrer à importação. Uma das origens mais comuns é precisamente Itália, como explicava em 2019 o administrador de uma das maiores empresas de produção e comercialização de aves.
A vacinação não é uma solução?
Poderia ser a melhor forma de contornar a opção pelo abate perante focos de gripe. Há, no entanto, vários constrangimentos à sua adopção generalizada. Desde logo porque é preciso vacinar todas as aves na mesma exploração (em alguns casos são largos milhares de animais), o que é um desafio logístico e económico. Além disso, a vacina compromete os resultados dos testes à presença do vírus, o que complica o controlo real do seu estado de saúde.
O maior constrangimento é, ainda assim, comercial. Em países com elevada incidência mas com produção vocacionada apenas para o mercado interno, como a Indonésia, o Egipto e o México, a vacinação já é a solução preventiva por definição. Nos países em que a exportação representa uma fatia significativa do negócio, a vacinação raramente é feita – pois nenhum país importador quer correr o risco de estar a trazer para o seu território aves potencialmente infectadas. Perante a impossibilidade de distinguir um animal doente de um vacinado, as portas de entrada ficam fechadas.
Isto leva a um impasse, sendo que por sua vez as fabricantes de vacinas também não querem investir no desenvolvimento de vacinas cada vez mais eficazes sem a certeza de que haverá um mercado global para a sua comercialização. Em Maio, o Conselho Europeu aprovou uma abordagem estratégica para generalizar a vacinação entre os Estados-membros, o que ajudará a dar um empurrão na direcção certa.
O peso dos apoios e o custo real da carne
Por cá, o Estado está a suportar 80% dos custos com o abate de aves, incluindo as despesas com limpeza, desinfecção, transporte e destruição dos animais abatidos. É mais um apoio que se junta ao volumoso pacote de subsídios atribuídos à pecuária – que representam (entre ajudas directas e indirectas) cerca de dois terços de todos os subsídios agrícolas da União Europeia. Especificamente em Portugal, há também subsídios atribuídos por cabeça, como os €40 por fêmea nos ovinos e caprinos, ou os €99 a €129 por vaca leiteira (abominamos esta expressão, pois nenhuma vaca dá milagrosamente leite sem ser inseminada, mas é aquela que a indústria utiliza).
Este sistema de subsídios por cabeça representa um incentivo perverso: leva ao aumento da densidade de animais por área exploração para esticar a receita, com consequências para a saúde dos próprios animais e para o ambiente.
Na Alemanha foi feito um estudo muito interessante, que estimava o verdadeiro preço da carne, num cenário de ausência de subsídios e contabilizando os custos reais com a produção. Na produção convencional o preço subiria 146% (em modo biológico, o aumento seria de 71%) – um aumento de cerca de €2,41/kg. O preço do leite seria 91% mais alto em modo convencional (40% superior no biológico), o que se traduziria em mais 24 cêntimos por quilo de produto.
A principal mensagem a reter
Voltemos ao primeiro parágrafo deste texto: comer é algo tão frequente que pode parecer um acto banal, mas é muito mais do que isso. As decisões que tomamos têm um efeito borboleta em todo o sistema alimentar. Algumas têm mais peso do que outras.
O acto de comer peru ou leitão tem uma carga maior do que o de comer uma batata ou uma banana. Há impactos incomparáveis, há uma responsabilidade partilhada que não podemos simplesmente descartar.
O que está aqui em causa não é o corte total no consumo de carne. É, acima de tudo, a consciência do impacto do tipo e do volume desse consumo e da intensificação da produção – um fenómeno das últimas décadas e com tendência para se acentuar. E isso só se consegue com informação como aquela que te trazemos hoje com esta newsletter.
Sabemos que é um tema controverso, sensível, delicado. Mexe com emoções, hábitos e tradições. Sabemos que há um risco real de esta newsletter deixar muitos leitores desconfortáveis. Se for o teu caso, queremos que saibas que compreendemos perfeitamente o que sentes; que pensámos cuidadosamente cada palavra, cada frase, cada link para que tudo fosse devidamente fundamentado, sem exageros nem alarmismos; que, no limite, sentimos que este conhecimento e esta reflexão eram demasiado importantes para ficarem guardados na gaveta.
Com 2023 a bater à porta, talvez seja uma oportunidade para pensar em resoluções de ano novo que façam sentido e que tenham impacto.
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