O que há assim de tão errado na forma como o café é produzido para ter uma pegada tão elevada? A resposta está no método de produção.
À sombra vs. ao sol
Tradicionalmente, o café fazia (e em menor percentagem ainda faz) parte de um ecossistema biodiverso, mais equilibrado, onde as plantas crescem intercaladas com árvores que as protegem da exposição solar. Neste habitat prosperam aves que adoram os principais insectos que atacam a planta do café, servindo como insecticida natural na prevenção de pragas. Ou seja, há menor necessidade de recorrer a químicos para assegurar a viabilidade da produção.
Ao mesmo tempo, as árvores prestam um serviço de inestimável importância ao sequestrar carbono, imitando aquilo que acontece nas (verdadeiras) florestas. Quando produzido deste modo, o café tem os seus impactos parcialmente mitigados pelo ecossistema do qual faz parte.
Que café ando a beber?
Existem 124 espécies de café identificadas, embora praticamente toda a produção comercial esteja repartida entre arábica (Coffea arabica L.) e robusta (Coffea canephora).
Por enquanto a maioria do café consumido no mundo ainda é arábica, mas a robusta tem vindo a ganhar cada vez mais terreno (já está acima dos 40%). Um pormenor: o nome robusta é um nome coloquial atribuído a esta espécie dada a sua robustez – é mais resistente do que a arábica a doenças.
As grandes marcas de café, incluindo as mais populares em Portugal, vendem sobretudo misturas de arábica e robusta para combinar características de cada uma destas espécies. Vão, no fundo, à procura do melhor de cada.
No mundo do café de especialidade, que ganha cada vez mais adeptos em Portugal, a arábica é sagrada. Para esta corrente, a robusta está numa segunda divisão no que diz respeito à qualidade. O seu sabor é mais amargo, acre e com menor acidez – há quem diga que tem notas de borracha queimada, madeira e tabaco. Por outro lado, tem quase o dobro do teor de cafeína da arábica (se isso é uma vantagem ou desvantagem, fica ao teu critério) e produz um café com mais creme.
A grande explosão do consumo de café das últimas décadas tem sido suportada por um crescimento significativo na produção de robusta, que pode ser feita a altitudes mais baixas, com exposição solar total (em regime de monocultura mais intensiva) e mecanização do trabalho.
Os custos de produção com este método (mais técnico e tecnológico) favorecem as explorações agrícolas de larga escala, que pela sua dimensão conseguem diluir os custos com equipamento e assim baixar os preços, mantendo ou até aumentando as suas margens na venda do café. Além disso, a produtividade na mesma área de terreno é superior à do método mais tradicional.
Sol na eira e chuva no nabal?
Diz o ditado português que não podemos ter os dois e no que toca à produção de café aplica-se a mesma lógica. Não podemos ter preços baixos e grande produtividade sem que haja consequências significativas.
Para produzir sob sol pleno é preciso, antes de mais, tirar tudo o que já está num determinado terreno. Ou seja, a produção mais industrializada implica um processo de desflorestação. Entre os impactos estão também a erosão e degradação dos solos, além da contaminação causada pelo uso acentuado de fertilizantes e outros químicos de síntese – incluindo vários que estão banidos na União Europeia. É daqui, na verdade, que vem boa parte da pegada de carbono da produção do café.
As plantações de produção mais intensiva, sob sol pleno, acabam por esgotar os nutrientes no solo com relativa rapidez – as plantas têm de ser substituídas ao fim de um máximo de 15 anos, enquanto as que são cultivadas à sombra duram mais de 30. Em muitos casos, a opção escolhida pelos grandes produtores é abandonar essa plantação e desbravar outro terreno.
Com as alterações climáticas, as zonas adequadas à produção de café (e aqui falamos sobretudo de arábica) vão encolher ano após ano – estima-se que até 50% da área até 2050, simplesmente porque muitas regiões tornar-se-ão demasiado quentes para o seu cultivo ser viável. Ao mesmo tempo, muitas das 124 espécies de café estão seriamente ameaçadas, correndo risco elevado de extinção.
Preços e escravatura
Talvez não saibas, mas o preço do café (pago ao produtor) está cotado em bolsa. E esta dinâmica de especulação causa um desfasamento entre a realidade dos custos de quem produz e o verdadeiro rendimento que conseguem obter pelo seu trabalho. Não faltam relatos de produtores que abandonaram a produção de café porque simplesmente não recebiam o suficiente para cobrir os custos – já nem falando em lucros. Pior ainda: o preço de venda do café tem subido ao longo dos anos, mas na realidade a remuneração dos produtores tem vindo a cair.
A inflação tem sido especialmente acentuada nos últimos meses, como consequência de três fenómenos distintos: a pandemia, a guerra na Ucrânia e uma quebra substancial da produção no Brasil, de longe o maior produtor mundial, causada por secas e geadas. Como resultado, os preços chegaram a atingir praticamente o dobro – mais ainda no caso do café de especialidade.
E depois há os problemas já conhecidos do trabalho escravo e infantil nas plantações de café, que se perpetuam geração após geração, mantendo famílias inteiras reféns de um sistema perverso. Não falamos de casos ocasionais, mas sim de uma prática comum. Aliás, é altamente provável que já tenhas bebido café produzido com mão-de-obra escrava e infantil.
Qual é a solução?
É necessária uma mudança sistémica, que corrija o (des)equilíbrio de forças na produção, distribuição e consumo do café. Na parte que está ao teu alcance, podes começar por privilegiar o café dito de especialidade, de produtores com nome, e cuja produção mesmo que à distância podes conhecer um pouco melhor.
Hoje em dia não faltam torrefactores e sítios onde podes comprar e beber café oriundo de cadeias de abastecimento mais transparentes, com níveis elevados de rastreabilidade, e que pagam um valor mais justo a quem efectivamente produz.
Sim, o preço a pagar por este café é mais alto, mas está mais próximo de ser um preço real – que tem em consideração não só os custos efectivos de produção, mas também os impactos (sociais, económicos, ambientais) que resultam desta actividade.
No limite, é pertinente reflectir aprofundadamente sobre a questão quantidade vs. qualidade. Consumir menos mas consumir melhor.
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