Em todo o mundo eurocêntrico, a política permanece impotente porque os muito ricos preferem o fim do planeta ao fim de seus privilégios. O que é preciso para vencê-los? Qual o papel, neste cenário, de um jornalismo de profundidade?
Eleito
em meio a esperanças, o governo Lula acabou por ceder aos que
capturam, sem nada produzir, a riqueza de um país regredido e
extenuado. Por isso, o Parlamento apressou-se a aprovar as novas
leis, que reduzem direitos sociais e ampliam a desigualdade.
Tramitaram a jato, em violação mal disfarçada à Constituição.
Em vez de debate nacional, houve chantagem explícita dos “mercados”,
que investiram contra a moeda nacional. A mídia participou, ao
difundir a ideia – evidentemente falsa – de que “as contas
públicas não fecham” e é necessário um “ajuste fiscal”.
Os parlamentares da oposição que resistiam foram demovidos pela
liberação de bilhões de reais em emendas. Mas ao recompensá-los,
o Executivo não ganhou mais liberdade. Ao contrário: pagou para que
lhe vestissem uma camisa-de-força. Agora, será ainda mais difícil
ampliar os investimentos públicos. Num contexto adverso, enquanto
não há força para reformas estruturais, seriam o principal caminho
para reduzir a injustiça social. Mas escandalizam o 0,1% que quer o
dinheiro do Estado apenas para si.
Ao vencer, estes se preparam (e se fortalecem) para novas
pressões. Não haverá trégua. Foi pouco, dizem os
porta-vozes dos rentistas, mal terminadas as votações. O ministro
da Fazenda e o novo (?) presidente do Banco Central lhes dão razão:
“não existe bala de prata”, disseram há poucos dias. Como no
filme O Feitiço do Tempo, o “ajuste fiscal” é um pesadelo que nunca termina.
* * *
São bastante conhecidos – e viáveis – os meios para evitar
um colapso climático. O uso de combustíveis fósseis precisa ser
reduzido, por meio de amplos investimentos em fontes energéticas
limpas. Redes de transporte coletivo devem substituir, em larga
medida, o automóvel. As construção das infraestruturas necessárias
tem um efeito colateral positivo, pois pode gerar milhões de
ocupações dignas, num mundo carente de direitos para as maiorias.
Reduzir o abismo social importa – pois o 1% mais rico (77 milhões
de pessoas) emite, por seu padrão de consumo, tanto CO² quanto os
66% mais pobres (5 bilhões de humanos)… O combate ao consumismo
pode ser complementado com medidas específicas, como a restrição à
pecuária industrial. Não podem ser mais tolerados processos hoje
muito difundidos – como a obsolescência programada e a produção
incessante de embalagens descartáveis (especialmente plásticos).
E no entanto fracassam, uma após a outra, as conferências da ONU
convocadas para encarar o problema. Nada indica, por enquanto, que
será diferente na COP30, em Belém. Os dois principais motivos são
normalmente ocultados, pois apontam para o parasitismo do capital
financeirizado. No Ocidente, as corporações agigantaram-se e já
não aceitam ser limitadas nem por sociedades, nem por Estados. Um
pequeno tributo internacional sobre as transações financeiras (como
a Taxa Tobin), ou sobre a exportação de petróleo e minérios,
permitiria financiar a transição energética nos países pobres,
hoje em forças para realizá-la. A construção de grandes redes de
ferrovias e metrôs (como se faz na China) faria despencar as viagens
unipessoais e a venda de carros. O que impede a adoção de medidas
como estas não é sua suposta inviabilidade mas… sua eficácia.
O segundo motivo talvez seja de ordem político-psicanalítica.
Como não se cansa de lembrar o economista Ladislau Dowbor, os
avanços técnicos das últimas décadas permitiriam assegurar
vida digna a todos os seres humanos. A riqueza produzida
coletivamente equivale a 3,3 mil dólares por mês (R$ 20 mil) por
família de quatro pessoas.
Mas onde há abundância, não há privilégio. Parece óbvio que
o Brasil será um país mais justo e feliz, se o Estado destinar ao
SUS, à escola pública de excelência e à despoluição dos rios
urbanos os R$ 800 bi que transfere todos os anos aos rentistas. Mas
talvez a frase
célebre de Mark Fisher (“parece mais fácil acreditar no fim
do mundo que no fim do capitalismo”) precise de um complemento.
Isso se dá também porque, para o 0,1% que controla o poder, é mais
fácil aceitar a extinção do planeta do que o fim de suas regalias…
* * *
Como escapar de uma prisão invisível – ou seja, daquela que,
estando inscrita na subjetividade social, é mais eficaz do que
qualquer outra? Os privilegiados desejam o fim da Política como
potência coletiva (daí seu permanente flerte com o fascismo). Mas
por que – sendo tão minoritários – sua ideia de que todas as
mudanças sistêmicas são inviáveis, ainda prevalece?
Passadas quatro décadas da queda do “socialismo real”,
perdura a ausência de um novo horizonte emancipatório. Por não se
sentirem ameaçados, os rentistas responderam à crise iniciada em
2008 radicalizando seu projeto e sua cobiça. Os governos ocidentais
nunca emitiram tanto dinheiro em favor dos mais ricos, nem atacaram
tão ferozmente o Estado de bem-estar social. As megacorporações e
fundos serviram-se da tecnologia não para reduzir o tempo de
trabalho – mas para torná-lo mas intenso e desprotegido. A
periferia foi submersa novamente na condição de semicolônia.
Mas o déficit não está apenas no plano teórico. Espraia-se
também no terreno da informação. Ao estabelecer uma aliança
de facto com o capital financeiro, o governo brasileiro
provavelmente ignora as consequências devastadoras deste movimento –
e, em especial, as novas teorias que mostram como é possível
evitá-lo. Quando transferem seus bancos de dados para o Google ou a
Meta, as universidades e o Judiciário do país parecem desconhecer
que estão oferecendo seu bem mais precioso (conhecimento
estratégico) em troca de espelhinhos.
Outras Palavras empenha-se em nadar contra esta maré –
embora com menos recursos do que seria necessário. Nossa seleção
de melhores textos de 2024 (que vai ao ar a partir da próxima
segunda-feira) é um testemunho. Nela estão presentes textos sobre a
conjuntura brasileira. Orgulhamo-nos de ter advertido, já em abril
de 2023, que o “arcabouço fiscal” e o teto de gastos implícito
“apequenarão(iam)
o governo Lula”. Mas procuramos ir muito além.
Convidamos nosso público a inteirar-se das reflexões mais atuais
sobre a Crise Civilizatória e seu desdobramento – o Colapso
Climático. Chamamos atenção para as consequências, num país
periférico: o inchaço de setores destrutivos, social e
ambientalmente, como o Agronegócio. Suscitamos esperanças – ao
evidenciar, por exemplo, a emergência do Sul Global, ou a crise do
eurocentrismo.
Abordamos – dos pontos de vista político e científico – o
avanço da Inteligência Artificial, suas imensas potencialidades e,
em contrapartida, as ameaças que ela representará enquanto
permanecer sob controle de megacorporações privadas. Destacamos o
SUS, e o Comum da Saúde, em contrapartida à medicina de negócios.
Investigamos os feminismos, as novas relações afetivas e as
identidades antissistêmicas. Há mais. A seleção desdobra-se em 14
temas que julgamos de enorme relevância para compreender o mundo
contemporâneo e (em especial) transformá-lo.
Anos difíceis virão. O avanço da ultradireita continuará
presente enquanto as forças populares não puderem recompor um
projeto capaz de empolgar as maiorias e de se reapresentar como o
autêntico “antissistema”. Em resposta à sua crise, o Ocidente
pode empreender guerras brutais, como o genocídio praticado por
Israel em Gaza. Não nos enganemos: tudo isso são sintomas de um
declínio. A força do sistema estava em sua capacidade de incorporar
as demandas populares e construir hegemonias, nos anos 1940-70.
Agora, é época de trevas.
A grande pergunta é: seremos capazes de salvar a humanidade e o
planeta, antes que a fúria destrutiva do capital-rentismo os
destrua? Ainda é impossível saber. Lutaremos muito – esperamos
que com sabedoria – nos próximos anos. Temos o impulso de novos
estímulos. O VAT e as ações pela redução da jornada de trabalho
demonstram como há espaço para mobilizar as maiorias, quando se
está disposto a ouvir e sentir seus dramas. Há meses, a campanha
contra o PL dos Estupradores relembrou que é possível e necessário
pressionar a institucionalidade – e alcançar vitórias.
Estamos nos despedindo de 2024. Outras Palavras e Outra
Saúde entrarão em recesso a partir de 22/12. Desejamos festas
criativas, descanso regenerador, chances de refletir. Nos
reencontraremos em 2025.
Abraço forte da
Redação de Outras Palavras
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