Outra conclusão é a de que a grande maioria dos artigos sobre alterações nos hábitos alimentares inclui – obedecendo ao tal princípio de ouvir ambos os lados da mesma história – declarações de elementos ligados ao sector da pecuária, em particular representantes da maior associação de produtores de gado dos EUA. Ou seja, dão voz a uma parte altamente interessada em manter o statu quo, independentemente da veracidade ou do rigor científico daquilo que dizem.
Como resultado, a mensagem chega distorcida ao leitor, apresentada como uma disputa renhida entre quem acredita veementemente que é fundamental comer menos carne e quem defende que os relatos do impacto da produção de carne são manifestamente exagerados. Na dúvida, o ser humano tende a manter tudo como está – optando neste caso por não mudar rigorosamente nada na sua alimentação.
No limite, esse exercício de (suposta, embora desequilibrada) isenção ajuda a perpetuar ideias já refutadas, como a de que o aquecimento global é discutível e/ou que as suas reais causas estão ainda por determinar. Só que a ciência tem dedicado muita atenção ao assunto nos últimos anos, deixando pouca margem para dúvidas e pondo a nu o vazio das declarações de quem faz lóbi por causas ambientalmente indefensáveis – como acontece com a carne.
E esta é uma realidade transversal – não se cinge aos EUA. Aqui ao lado, um estudo de Núria Almiron e Milena Zoppeddu, investigadoras da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, concluiu que apenas 1.5% (Espanha) e 3.6% (Itália) dos artigos jornalísticos sobre alterações climáticas mencionavam o impacto ambiental de dietas à base de carne (meat-based diets, o que quer dizer simplesmente dietas com um consumo elevado de carne – ou seja, a dieta da maioria dos portugueses). A análise incidiu sobre um conjunto de mais de 22 mil artigos ao longo de um período de sete anos.
Não podemos ignorar aqui o viés dos próprios jornalistas, que enquanto aderentes a um padrão alimentar incompatível com hábitos mais sustentáveis acabam por desvalorizar ou ignorar as evidências científicas para reduzir o seu próprio desconforto. Este é, aliás, um excelente exemplo de dissonância cognitiva.
Este artigo publicado na Forbes resume a face mais visível do problema: os jornalistas estão a cometer com o tema das mudanças na alimentação o mesmo erro que cometeram com as alterações climáticas, ao dar tempo de antena equivalente a quem defende posições contrárias.
Estima-se que neste momento 99% da comunidade científica esteja de acordo quanto ao fenómeno das alterações climáticas e ao impacto das acções humanas no seu agravamento. Ora, se um jornalista for falar com uma pessoa que subscreve o que diz a maioria dos cientistas e der espaço semelhante a outra pessoa que exprime uma opinião contraditória, para o leitor ou telespectador a ideia que passa é de que ainda há uma divisão na comunidade científica. A este viés chama-se bothsidesism (ou falso equilíbrio, em português).
Foi isto que aconteceu ao longo das últimas décadas com as alterações climáticas e é o que continua a acontecer, agora, com as mudanças urgentes nos nossos padrões alimentares.
É preciso um olhar mais crítico, atento, blindado contra os mais ferozes interesses económicos, em nome de uma informação que de facto ajuda as pessoas a tomar decisões mais conscientes, num caminho mais sustentável. É isso que fazemos aqui, e é isso que louvamos também no trabalho feito (felizmente) por muitos jornalistas.
A importância de premiar e apoiar o jornalismo de qualidade
Desde o ano passado que estamos responsáveis pela organização do Prémio de Jornalismo EIT Food em Inovação e Sustentabilidade Agroalimentar. A primeira edição premiou uma grande reportagem da SIC sobre o olival intensivo e superintensivo no Alentejo (1.º lugar) e um episódio do programa Biosfera (RTP) sobre desperdício alimentar (2.º lugar).
Este domingo, Dia Mundial da Alimentação, serão conhecidos os vencedores da 2.ª edição. Estaremos no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, com uma cerimónia dedicada a debater estes assuntos que tanto nos apaixonam. A cerimónia será parte de um programa mais alargado, pensado por nós e pela Ciência Viva para assinalar este dia especial.
Vamos moderar um debate sobre como comunicar ciência, que juntará personalidades cujo trabalho se cruza e interliga neste desafio de descodificar conhecimento de grande complexidade em pedaços de informação fáceis de assimilar para o público em geral.
De seguida, vamos estar à conversa com Monica Truninger, socióloga que tem dedicado boa parte do seu trabalho a investigar os hábitos alimentares dos portugueses – e que de resto já tem sido publicado em livro. Não percas este momento, porque promete ser uma partilha muito, muito interessante.
Podes juntar-te a nós presencialmente, no Pavilhão do Conhecimento, ou acompanhar a cerimónia à distância, através da transmissão em directo online. Qualquer que seja a tua opção, tens aqui uma excelente oportunidade de ouvir e aprender mais sobre alimentação e sustentabilidade – além de ficares a conhecer em primeira mão os vencedores do prémio deste ano.
Inscrições aqui.
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