Era março de 2020 e, forçadamente, fomos condicionados a ressignificar a nossa história. Dar mais sabor à nossa comida, mais cores pra nossa vista, mais conforto pra nossa alma. Tivemos o ímpeto de nos alimentar de uma doce esperança no decorrer dos dias e, no final, ficava sempre aquele gosto meio amargo. As noites se cobriram de uma densa neblina e a confusão tomou tudo que é canto, nada foi deixado de lado. A gente sentiu saudade, angústia, medo, vontade de abraçar e, por incrível que pareça, abraço foi estritamente limitado. Cobrimos parte do nosso rosto e nossa habilidade de comunicação se fez maior através do nosso olhar.
Nos momentos mais incertos a leveza vinha das memórias. Que saudades de ser criança e enxergar o mundo com uma perspectiva completamente renovada e criativa. Pedaço de papelão é disco voador, folha em branco é trilogia, hora do banho é náufrago em alto mar, gente grande é sempre bem resolvida, a Terra gira devagar porque nossas tardes duram infinitas horas. Que saudades do beijo na testa antes de capotarmos na cama, do pão com manteiga e nescau pós escola, dos cadernos encapados pra dar início a uma nova série.
Várias incontáveis vezes do ano que passou tenho certeza que você fechou os olhos e voltou no passado. Eu também. Parecia uma maneira de segurar as mãos do nosso "eu-lá-de-trás" e conseguir forças pra seguir em frente. Sentei na cama, derrubei bagunçadamente todas aquelas 10x15 sobre a colcha e fui teletransportada no tempo. Foto aflora cheiros, texturas, sensações, acende o peito, faz parecer que acontecimentos tão distantes estão diante de nós novamente. Pelas fotos a gente se conecta, se faz presentes no mesmo espaço ainda que estejamos em trajetórias e locais diferentes.
A fotografia tem um valor imensurável que é construído através da passagem dos ciclos. A gente sempre escuta sobre a importância dos registros, mas a gente sabe realmente o que isso significa?
Como fotógrafa, posso dizer que a caixa de sapatos onde moram minhas histórias só fizeram real sentido na minha vida adulta. E olha, sempre tivemos o costume de reunir todos na sala de estar pra voltar os olhos nessas lembranças. Só que fotos recém tiradas não têm o mesmo impacto que aquelas que se tornam envelhecidas. Também tem o fato de que os álbuns virtuais sempre cheios levam embora uma grande porcentagem da mágica. Parece que a capacidade de mergulhar profundamente diante de uma fotografia vai se esvaindo de pouco em pouco com o instantâneo do celular.
Lá nos anos 90 minha mãe tinha uma câmera super baratinha. E pelo menos 3 vezes dentre aqueles 365 a gente marcava presença no laboratório pra revelar o filme. A ansiedade de esperar era positiva e não tinha nenhuma cobrança da imagem perfeita. Se a foto queimava, estourava, borrava, escurecia, a gente ria e guardava mesmo assim, porque aquele pedaço de papel brilhante, por vezes nada nítido ou bem enquadrado, abria uma janela que marcava um instante merecível. Chegávamos em casa e colocávamos cada uma em seu devido espaço no plastiquinho (quem lembra desses mini álbuns que acompanhavam o envelope do pedido?). E passávamos semanas revendo aqueles acontecimentos.
É isso que faz uma fotografia ter valor.
Você não precisa contratar um fotógrafo como única forma de ser visto. Você não precisa de uma super máquina pra dar início ao primeiro click. Você não precisa da sua melhor roupa ou de um corte de cabelo pra daí pensar num autorretrato. Você não precisa de um pacote de filtros pra esconder suas imperfeições tão perfeitas, e nem de uma casa pronta porque é justamente nos processos onde nossas singularidades mais se fazem presentes. Você precisa só daquilo que representa sua realidade, sua vida, suas emoções, sua crueza pra poder voltar ao passado quando estiver no futuro e se reconhecer em cada fragmento.
Nossa vida é uma obra de arte que abrange nossos altos e baixos. Que bom que temos provas dos melhores penteados, mas que não deixemos de dar ênfase pro corte que deu errado. Que estejamos atentos às grandezas disfarçadas de pequenezas que fazem parte da nossa rotina. A fotografia é uma maneira intensa de escrever diários que não voam com o vento. Temos sido condizentes com a história que estamos contando através dessas imagens?
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