Talvez nunca se tenha falado tanto de impermeabilização do solo como nas últimas semanas, em particular em Lisboa, onde o (des)ordenamento do território fez com que a cidade perdesse em grande parte a capacidade de absorver água da chuva, como as imagens do caos provam. A capital portuguesa é, aliás, a quarta cidade mais impermeabilizada da Europa, com mais de 60% do seu solo ocupado por infra-estruturas que impedem a infiltração da água.
Carlos Moedas foi rápido a estabelecer a correlação entre as inundações e as alterações climáticas, embora a realidade mostre que a gestão do território tem mudado muito mais rapidamente do que a frequência e o volume das chuvas. Por outras palavras, a culpa das cheias é mais do que tem (ou não tem) sido feito em Lisboa do que do clima propriamente dito.
Este artigo do Lisboa Para Pessoas explica em grande detalhe os contornos do problema da cidade e as soluções que estão a ser desenhadas – a começar pelo já famoso Plano de Drenagem.
Começamos esta newsletter por aqui para te falar desse elemento absolutamente precioso à nossa vida na Terra: o solo.
Temos tendência a vê-lo como uma chatice, como sinónimo de sujidade ou nojo (basta ver a repulsa com que muitos sentem quando se deparam com um escaravelho ou uma minhoca), como um mero veículo ao nosso dispor para cultivar espécies de plantas para nosso próprio benefício.
Mas o solo não é nada disso. Nem sequer existe simplesmente para nos permitir produzir comida.
O solo é, sim, um conjunto de estruturas incrivelmente complexo. É composto por minerais, água, ar e matéria orgânica e está no topo das variáveis mais essenciais à vida na Terra. Se pegares num pedaço (saudável) de solo, vais ter na tua mão mais organismos vivos do que os 8 mil milhões de humanos que hoje habitam o planeta – e, na verdade, mais do que todos aqueles que já aqui viveram.
A lista de serviços que o solo nos presta é quase interminável. Sem (um) solo (saudável) não há alimento, não há água pura para bebermos, não há resiliência perante cheias e secas. É uma fonte importante de sequestro de dióxido de carbono – aquele que precisamos desesperadamente de retirar da atmosfera.
Na verdade, o solo é o segundo maior sumidouro de carbono da Terra, a seguir aos oceanos. Captura mais CO2 do que as florestas e retém três vezes mais carbono do que a atmosfera.
A ciência do solo
As plantas usam a luz solar como fonte de energia, removem dióxido de carbono da atmosfera, transformam-no num combustível fóssil e crescem com base na sua utilização. Uma boa parte desse combustível desce até às raízes, onde alimenta os microorganismos (bactérias, fungos) no solo, que por sua vez disponibilizam minerais (ferro, fósforo, etc.) às plantas. Como parte do seu trabalho, os microorganismos constroem e reconstroem a própria estrutura do solo, tornando esse sequestro de carbono mais eficiente.
Em boa verdade, esta dinâmica entre plantas e microorganismos não é muito diferente da nossa relação simbiótica com bactérias. Quando ingerimos um alimento, são essas bactérias que vão decompor o alimento em formas mais simples que o nosso corpo consegue assimilar e usar para o seu bom funcionamento.
Já para não falar de um outro serviço que os microorganismos prestam à nossa saúde, ao produzir compostos antibióticos (originalmente para a sua própria sobrevivência) que hoje estão na base de muitos dos antibióticos usados por humanos. Como explica este vídeo muito educativo da BBC, "criamos medicamentos literalmente a partir do nosso solo".
Infelizmente estamos a tratar muito mal os nossos solos.
A erosão do solo por acção humana é um fenómeno com muitos, muitos anos, quando começámos a usar arados para remexer a terra e assim semear as culturas que queríamos produzir.
Com o advento da Revolução Agrícola – e mais tarde da Revolução Industrial –, avançámos para a desflorestação de vastas áreas, para o uso do solo até à exaustão (por exemplo, sem rotação de culturas ou pousio) e para a aplicação de fertilizantes, herbicidas, pesticidas e fungicidas, para garantir que só as plantas que queríamos ver crescer tivessem essa oportunidade. Ao mesmo tempo, a intensificação do pastoreio reduz a cobertura do solo, potencia a erosão e a compactação por efeito do vento e da chuva.
O resultado tem sido catastrófico. As práticas agrícolas de hoje aceleram a erosão do solo, matam os microorganismos que nele vivem e libertam a água e o carbono que de outra forma estaria guardado a sete chaves debaixo dos nossos pés. O solo perde toda a sua estrutura, compacta-se e transforma-se em pó. É aquilo que normalmente conhecemos como desertificação – ou seja, terra que se torna um deserto.
Uma espécie que simboliza esta crise é a das minhocas, que funcionam como pequenas lavradoras subterrâneas. Criam túneis para melhorar a penetração das raízes das plantas e a permeabilidade do solo, além de se alimentarem de matéria orgânica. O resultado dessa transformação é o húmus, uma forma mais estável de matéria orgânica – capaz de reter uma grande quantidade de água, que pode depois ser libertada em tempos de seca. Só que as minhocas estão a desaparecer com a destruição do habitat e com elas desaparecem também os benefícios do seu trabalho.
Temos solos mais pobres, menos férteis, que por sua vez levam os agricultores a usar mais fertilizantes químicos para conseguirem continuar a produzir alimentos. Este círculo vicioso de proporções dramáticas está a contribuir significativamente para agravar o fenómeno das alterações climáticas, que por sua vez estão a comprometer ainda mais a saúde do solo – e, por arrasto, a nossa própria saúde.
Por outras palavras, agricultura moderna (ironicamente apelidada de convencional) e conservação do solo são duas coisas que não se misturam.
Feitas as contas, hoje em dia dois terços da Terra estão em estado de desertificação. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima que 90% da camada superficial do solo está em risco de desaparecer até 2050. O ritmo actual de erosão equivale a um campo de futebol (medida sempre muito útil) a cada cinco segundos. Nos últimos 150 anos perdemos quase metade desta camada.
Esta camada superficial, onde está a maior concentração de matéria orgânica e microorganismos, é responsável por 95% de todos os alimentos que comemos. Mais recentemente tem corrido a ideia de que já só teríamos 60 colheitas no horizonte até esgotarmos por completo a capacidade do solo, embora essa alegação seja ainda mais catastrófica do que a realidade. O que não quer dizer que não haja razões para preocupação – há, e não são poucas.
Um relatório da Comissão Europeia estima que 60 a 70% dos solos europeus estão doentes, por falta de matéria orgânica e minerais, e que isso se traduz também em perdas económicas: 50 mil milhões de euros por ano, só na União Europeia. Já para não falar nas consequências catastróficas da guerra na Ucrânia, que continua a destruir grandes áreas florestais e agrícolas e a contaminar solos de uma forma que torna inviável a produção de alimentos durante décadas.
Regra geral, são precisos mais de 100 anos (em alguns casos muito mais do que isso) para recuperar um centímetro de solo degradado ou perdido. Por essa razão, muitos especialistas consideram o solo um recurso não renovável. E há zonas do planeta onde essa degradação está acontecer a um ritmo muito mais vertiginoso do que a capacidade de regeneração.
O progresso da ciência ao longo das últimas décadas tem dado pistas bastante claras quanto aos caminhos a seguir para reverter a degradação do solo e promover a sua recuperação. O acordo assinado na última cimeira da biodiversidade (COP15) para a protecção de 30% do planeta é um passo nessa direcção. As novas regras da União Europeia para combater a desflorestação e a degradação florestal também apontam nesse sentido. Mas como podemos conjugar a produção alimentar para satisfazer as necessidades de 8 mil milhões de pessoas ao mesmo tempo que conservamos e regeneramos o solo?
As receitas para um solo saudável
A mobilização do solo é um dos primeiros factores a ter em consideração. Lavrar menos ou não lavrar de todo está entre as mudanças que mais contribuem simultaneamente para reduzir a libertação de CO2 e evitar a degradação do solo (e de todas as formas de vida que dele dependem).
Em paralelo, garantir uma cobertura constante do solo (com plantas ou palha) reduz a sua erosão. Se essa cobertura for feita com culturas capazes de fixar azoto no solo, como acontece com as leguminosas, estamos em simultâneo a adubar a terra sem recurso a químicos de síntese – que agravariam a deterioração do solo. São os chamados adubos verdes.
Outra opção recai em culturas perenes (essencialmente árvores e arbustos), que ao terem um ciclo de vida mais prolongado asseguram menores perturbações no solo.
Igualmente importantes são a rotação de culturas (não cultivar o mesmo tipo de alimento na mesma área em campanhas sucessivas, deixando até um intervalo de vários anos) e a consociação (conciliar culturas que trazem benefícios mútuos).
Estas ideias estão no centro daquilo que hoje se conhece como agricultura regenerativa. O termo surgiu nos anos 80 nos Estados Unidos da América, mas ganhou mais força desde 2013, quando Allan Savory, um biólogo do Zimbabué, deu uma TED Talk sobre a sua visão para o combate às alterações climáticas. As alegações de Savory não têm uma base científica assim tão sólida – aliás, o próprio diz que "o método científico nunca descobre nada". Ainda assim, as suas ideias espalharam-se rapidamente um pouco por todo o mundo. Essa disseminação ganhou ainda mais velocidade com o documentário "Kiss the Ground", disponível na Netflix, que amplificou a mensagem e fê-la chegar a um público mais alargado.
Há essencialmente três correntes dentro da agricultura regenerativa:
- Filosófica, de acordo com princípios holísticos de respeito e harmonia com a natureza (em muitos casos ligada à biodinâmica, à agricultura sintrópica ou à permacultura), e com a integração de dimensões sociais;
- Restauradora, com objectivos claros de regeneração de solos e paisagens em contextos de pequena escala, sobretudo em ambientes marginais/degradados, como acontece com o trabalho de muitas organizações não-governamentais, embora muitas vezes com projectos de curta duração e impacto (a longo-prazo) muitas vezes questionável;
- Corporativa, como parte integrante do discurso das empresas sobre sustentabilidade e dos seus programas de responsabilidade social corporativa.
Fizemos uma pesquisa por 'regenerative agriculture' na internet e encontrámos várias multinacionais entre os primeiros resultados, inclusive algumas historicamente associadas aos problemas que a (excessiva) industrialização do sistema alimentar nos trouxe. Todas fazem destas práticas a sua bandeira para um futuro mais sustentável.
Entre elas está a Syngenta, conhecida por ser uma das três grandes empresas que controlam o mercado global de pesticidas e sementes. A BASF, também parte do trio de gigantes deste sector, fala até em 'climate smart farming' ao promover alguns dos seus produtos. Nos primeiros resultados desta busca aparecem também empresas como a Nestlé e a Unilever, cujas credenciais são bem conhecidas.
Se estão todas elas a dar passos na direcção certa? Muitas, sim, mas por vezes só o mínimo indispensável (ao, por exemplo, promover a reduzida mobilização ou a cobertura constante do solo), talvez para poderem hastear a bandeira da sustentabilidade, usá-la para sua autopromoção e perpetuar o statu quo.
Outro termo cada vez mais referido é agroecologia. É uma outra forma de pensar uma agricultura mais sustentável. A palavra em si traz consigo uma carga mais política e social, que muitas vezes acaba por não ser associada à agricultura regenerativa. Na verdade, estes dois conceitos cruzam-se em muitas características, embora a agroecologia tenha até raízes mais antigas enquanto disciplina científica.
A agricultura regenerativa não vai resolver todos os problemas do sistema alimentar, Tem, sim, o potencial para desempenhar um papel importante na sua transformação.
Falta abordar um lado inevitável desta discussão: os animais. Praticamente todos os projectos de agricultura regenerativa incluem-nos como parte importante do sistema – alimentando-se em pastagens (de forma controlada) e contribuindo com estrume para adubar a terra até serem abatidos para consumo
À boleia desta lógica, há uma corrente que une produtores, retalho/restauração e consumidores na defesa deste tipo de carne como solução para os problemas da pecuária – incluindo o do bem-estar animal – sem alterações substanciais ao (volume do) consumo.
Tal como no caso de Savory, ele próprio produtor de gado, é bastante possível que alguns dos impactos positivos destas práticas sejam substancialmente menores do que os alegados. Um relatório da Food Climate Change Network, um think tank da Universidade de Oxford, analisou os regimes de pastoreio com a lupa (exclusiva) das emissões de gases com efeito de estufa (GEE). E a conclusão é muito menos entusiasmante: os contributos positivos dos animais são em boa parte cancelados pelos negativos (precisam de áreas maiores para pastar e emitem mais metano – porque vivem mais tempo). No máximo, compensariam em 60% as emissões de GEE face à pecuária intensiva.
Uma das passagens mais interessantes do relatório é a seguinte:
"We might choose, for example, to base farming systems on what animals, particularly ruminants, are ‘good’ at. They are good at recycling residues and crop by-products and making use of land that can less easily be cropped in order to provide us with food. The studies reviewed in this report suggest that this ‘ecological leftovers’ approach to livestock production – grasslands plus a substantial contribution from feeding monogastrics food waste – could provide a population of 9 billion with about 20 g animal protein (from all types) per person per day – much less than current Western consumption levels and below the anticipated global average of 31 g in 2050, but nevertheless a useful amount." (pág. 123)
Ou seja, seria possível fornecer 20 g de proteína animal (entre carne e derivados) por pessoa/dia num mundo com 9 mil milhões de pessoas aproveitando a capacidade dos ruminantes de consumir resíduos orgânicos e sub-produtos (as tais 'sobras ecológicas') para reciclar nutrientes, sem com isso ter efeitos ambientais negativos.
Em Portugal existe um sistema propício a concretizar este cenário: o montado. No entanto, é hoje evidente que está sob pressão, com o aumento do número de animais, o sobrepastoreio e a redução da própria área de montado – sobretudo porque as árvores que vão morrendo não vão sendo repostas.
Se este texto te deixou com ainda mais dúvidas e perguntas, é provável que a resposta para elas esteja neste artigo ou neste do World Resources Institute. Cada um deles explica em detalhe os contornos da dinâmica do sequestro de carbono na agricultura regenerativa e o porquê das suas limitações.
O desafio de cuidar do solo é comparável ao do combate às alterações climáticas, no sentido em que é preciso mexer em diferentes alavancas em simultâneo para chegar a uma resposta eficaz. A urgência tem, no entanto, de ser a mesma: enquanto a casa (Terra) arde, o chão (solo) está a desabar.
Para fechar, deixamos-te com um vídeo em que Julia Roberts toma a palavra da Mãe Natureza para deixar uma mensagem. Faz parte de uma campanha (já antiga) da Conservation International em que actores conhecidos (Edward Norton a representar o Solo, Harrison Ford enquanto Oceano, Penélope Cruz em nome da Água e Shailene Woodley no papel de Floresta, entre outros) dão voz a elementos da natureza. É uma mensagem forte, de apelo à acção, que vale a pena ver.
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