Era uma vez uma conferência repleta de líderes mundiais, com capacidade e poder para conduzir o destino da humanidade. Com várias opções em mãos, optam ainda assim por perpetuar o caminho que nos trouxe até aqui. A COP27 acabou no domingo, no Egipto. Não fosse pelo acordo para o estabelecimento de um fundo para perdas e danos e esta cimeira teria acabado com uma mão cheia de nada.
Depois do fracasso de Glasgow, no ano passado, o espectáculo desolador em Sharmk el-Sheikh obriga-nos a lançar uma questão fundamental: para que serve mesmo a COP? Neste momento é válido o argumento de que estas conferências anuais causam estragos mais significativos do que os benefícios que trazem. A começar desde logo pela logística, com os impactos associados ao evento em si – com os jatos privados que levam os líderes mundiais no topo da lista e a prevalência de menus repletos de carne e pescado a transmitir uma imagem de absoluta incoerência.
A isso junta-se um banho de realidade com o qual temos de lidar: no Egipto estiveram mais de 600 representantes do sector do petróleo, à procura de influenciar a definição de novos compromissos de redução de emissões mas também de oportunidades de negócio para novas explorações de combustíveis fósseis, em particular em África. Está aí parte da explicação para mais um falhanço negocial, com o travão imposto por países que detêm reservas relevantes de petróleo e gás e/ou que estão ainda bastante dependentes de carvão para gerar energia.
Só mesmo o mais optimista dos optimistas acredita ainda na possibilidade de mantermos o aquecimento da Terra abaixo de 1,5ºC face aos níveis pré-industriais. Ano após ano, com o volume de emissões de gases com efeito de estufa a subir em vez de descer (com uma pequena excepção provocada pela pandemia), esse objectivo tem ficado cada vez mais débil. Neste momento está nos cuidados paliativos, ligado às máquinas, com muito poucas razões para acreditarmos que sobreviverá.
Isso não quer dizer que devamos desistir, que mais vale a pena conformarmo-nos com um mundo apocalíptico. Até porque cada décima de grau pode fazer toda a diferença na sobrevivência e na sustentabilidade de milhões e milhões de pessoas. Também não significa, por outro lado, que desapareça a urgência em mudar. Pelo contrário, torna-se ainda mais imperativo fazer tudo ao nosso alcance para limitarmos ao máximo a subida da temperatura.
Quando falamos em alterações climáticas e nas medidas que podem travá-las ou mitigar o seu impacto, há um peso muito grande posto sobre os ombros do indivíduo. Esta newsletter tem de facto estado centrada sobretudo naquilo que está ao nosso alcance enquanto indivíduos para fazer a mudança acontecer. Chegamos hoje à 10.ª edição, e se leste as anteriores já sabes que na alimentação (responsável por cerca de 25% do total de emissões à escala global) o caminho passa inevitavelmente por duas áreas: adopção de dietas de base vegetal e redução do desperdício alimentar.
Sim, há um papel a desempenhar por cada um de nós nesta situação de emergência climática, e não devemos demitir-nos dele. Convém no entanto não esquecer que fazemos parte de um triângulo, com os outros vértices a serem ocupados pelos governos e pelas empresas. E é nesses dois vértices que se concentra grande parte do poder, embora isso aconteça essencialmente por escolha de todos os que estão no vértice do indivíduo. Afinal, somos nós que elegemos os governos (tanto a nível nacional como local) e, na maior parte dos casos, temos a possibilidade de votar também com o nosso dinheiro – comprando produtos e pagando por serviços de umas empresas em detrimento de outras.
Esta COP, enquanto expoente mediático da discussão sobre alterações climáticas, deixou a nu uma verdade crua: estes líderes não nos servem; servem-se a si próprios e aos interesses que os rodeiam e os mantêm no poder. Alimentam uma ganância no presente que vai sair muito cara – cada vez mais cara – no futuro. George Monbiot, jornalista do Guardian que já citámos aqui em newsletters anteriores, fez uma reflexão semelhante no rescaldo da conferência do Egipto, num artigo que termina assim (tradução nossa):
"Os governos do mundo rico chegaram à conferência no Egipto a dizer 'é agora ou nunca'. Saíram de lá a dizer 'que tal nunca?'. Navegamos por cada objectivo, linha vermelha e contenção prometida rumo a um futuro em que a possibilidade de existência de qualquer um de nós começa a aproximar-se do zero. Cada vida é um presente loucamente improvável. Por quanto mais tempo vamos sentar-nos a assistir enquanto os nossos governos deitam tudo fora?"
Temos comida suficiente para 8 mil milhões de pessoas?
Há uma certa ironia na coincidência de termos ultrapassado o marco simbólico dos 8 mil milhões de pessoas no planeta precisamente durante a COP27. É mais uma estimativa do que propriamente um número rigoroso, mas calhou a Damian – bebé nascido a 15 de Novembro na República Dominicana – a honra de ser o 8000000000.º humano. Seja como for, esta efeméride relançou um debate: como é que vamos alimentar tanta gente?
É fácil cair na tentação de dizer que a única solução é reduzir voluntariamente o número de seres humanos, optando por não nos reproduzirmos até a população mundial descer até níveis considerados mais sustentáveis. Há um fundo de verdade no raciocínio, sobretudo tendo em conta que ter filhos é a decisão com maior impacto ambiental que tomamos ao longo da vida.
O problema não está no argumento, mas na assunção de que não há outra via. Convém dizer que o pico de crescimento populacional aconteceu em 1968 e que desde então a taxa tem vindo a abrandar. A este ritmo, estima-se que até 2100 entraremos numa inversão de sentido, com a população global a começar a cair. Nessa altura, no entanto, seremos perto de 11 mil milhões de pessoas.
A boa notícia é que já produzimos comida suficiente para alimentar toda a gente que habita o planeta neste momento – e muitos dos que ainda aí vêm. A má notícia é que estes alimentos não chegam da mesma forma a todos. Por um lado temos populações nos países mais desenvolvidos a comer em excesso e a desperdiçar ainda mais; por outro lado temos entre 700 e 800 milhões de pessoas (ou seja, perto de 10% do total) em situação de subnutrição, em particular nos países em desenvolvimento.
A resposta para este desafio tem de vir sobretudo da uma grande transformação do sistema alimentar. É fundamental atacar o desperdício com todas as ferramentas e técnicas que já temos ao nosso dispor e que podemos vir a desenvolver. Deitar comida ao lixo implica não só potencialmente deixar de alimentar alguém, mas também desperdiçar todos os recursos naturais explorados para produzir esses alimentos, assim como as emissões de gases com efeito de estufa que o seu envio para aterro ou para incineração vão gerar (no caso da compostagem, esse impacto é limitado).
Com a produção alimentar a ocupar metade de toda a área habitável da Terra, precisamos também de travar a desflorestação e de encontrar formas mais eficientes de criar alimentos – produzir mais com menos e através de práticas mais ecológicas. Faz sentido usar 77% da área agrícola global para produzir animais e as rações que os alimentam? Abordámos este tópico mais genericamente na newsletter anterior, mas vale a pena aprofundar aqui a (in)eficiência que está em causa, tanto em calorias como em proteína:
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