Como interpretar esta classificação?
Na base do sistema NOVA está uma ideia-chave: o que determina se um alimento é ou não saudável não é tanto a sua composição nutricional (gorduras, hidratos de carbono, proteínas, etc.) mas sim o seu nível de processamento.
Tomemos como exemplo o milho. Podemos comê-lo de muitas formas, com graus de processamento distinto: uma maçaroca fresca, uma lata de milho cozido, uma broa de milho, um pacote de tiras de milho frito ou (um molho espessado com) amido de milho (a famosa Maizena). Um mesmo alimento pode ter muitas caras, e com isso impactos distintos no nosso organismo.
O conceito de alimento ultraprocessado surgiu quando Monteiro reparou num paradoxo: os brasileiros estavam a comprar menos açúcar, e mesmo assim as taxas de obesidade e de diabetes tipo 2 estavam a subir. A verdade é que no Brasil o consumo real de açúcar (e de óleo) estava a disparar – simplesmente deixara de chegar a casa através de pacotes de açúcar e passara a entrar sob a forma de bolos, bolachas, cereais de pequeno-almoço e outros produtos que tendem a ser ricos em açúcar, gordura e sal e que por essas características levam a um consumo excessivo.
Em 2014, e com base no trabalho de Carlos Monteiro e da sua equipa, o governo brasileiro advertiu a população para a necessidade de evitar os alimentos ultraprocessados, com o país a mergulhar numa epidemia de obesidade entre crianças e jovens adultos. Há, aliás, um documentário bastante impressionante que retrata esta realidade.
Hoje em dia, a escala do consumo destes produtos é inquestionável. Em países como o Reino Unido ou os Estados Unidos da América, os alimentos ultraprocessados já representam mais de metade das calorias ingeridas. Em Portugal, correspondem a perto de um quarto do total (23,8%, dados de 2015-16), embora seja expectável que este número suba ao longo dos próximos anos (em 2000, num estudo com contornos diferentes, estávamos nos 10,2%).
Há muitas razões para explicar o crescimento do consumo destes produtos. São convenientes, pois estão disponíveis em todo o tipo de comércio – dos grandes hipermercados às lojas de conveniência. Têm uma grande longevidade – aguentam nas prateleiras durante muitos meses, às vezes vários anos, sem se estragarem. São formulados para terem um sabor que nos faz querer voltar para comer mais e mais. Têm campanhas de marketing poderosas, tanto para adultos como crianças. E acima de tudo são baratos – com frequência mais baratos do que alimentos frescos, que devem estar na base de uma alimentação saudável.
É claro que o (baixo) preço está associado a uma série de factores, a começar pela produção em larga escala, dependente de ingredientes baratos (muitas vezes de menor qualidade), oriundos de agricultores mal pagos, e com recurso a automatização e/ou mão-de-obra de baixo custo. Daqui resultam produtos com margens altas para quem produz, interessantes para quem vende e altamente atractivos para quem consome.
As preocupações com os alimentos ultraprocessados são justificadas?
O sistema criado por Carlos Monteiro não foi (nem é) consensual. Houve quem criticasse a excessiva simplificação na divisão dos alimentos entre categorias. E quem duvidasse inclusive do impacto real do consumo de alimentos ultraprocessados por comparação com os seus análogos no estado natural.
Escusado será dizer que a indústria alimentar tem lutado desde o início contra a aplicação deste sistema. A esmagadora maioria dos investigadores que publicaram críticas ao NOVA tem, aliás, ligações ao sector dos ultraprocessados. De resto, a indústria tirou partido durante muitos anos da ambiguidade associada à ideia de 'alimentos processados' – para todos os efeitos o queijo, as ervilhas enlatadas e até uma bebida como kombucha entram nesta categoria. O NOVA veio destruir essa ambiguidade, criando uma distinção entre processados e ultraprocessados.
Entre os mais céticos estava Kevin D. Hall, investigador no National Institute of Diabetes and Digestive and Kidney Diseases, em Bethesda, no estado americano do Maryland. A sua primeira reacção ao saber da classificação NOVA foi de descrença e descrédito. Especialista em obesidade, Hall não via ligação possível entre o processamento dos alimentos e o ganho de peso.
A literatura científica existente até então estava demasiado dependente de correlações (o que não significa que o processamento dos alimentos levasse à obesidade). Para tirar as suas dúvidas a limpo, Hall e um grupo de colegas fizeram um estudo clínico randomizado controlado – considerada a melhor forma de produzir ciência neste contexto.
Durante quatro semanas, 20 pessoas (dez homens e dez mulheres) viveram confinadas numa clínica, onde só podiam comer aquilo que lhes fosse oferecido pela equipa do ensaio. A cada pessoa foi atribuída aleatoriamente uma de duas dietas – não processada ou ultraprocessada –, que seguiu nas duas primeiras semanas. Terminado esse período inicial, passaria à dieta oposta por mais duas semanas.
É interessante perceber de que forma isto foi posto em prática. Cada participante recebeu três refeições diárias, podendo comer tanto (ou tão pouco) quanto desejasse. Foi feito um esforço para que as dietas fossem equivalentes no total de calorias, densidade energética, macronutrientes, fibra, açúcares e sal, embora – obviamente – com grandes diferenças quanto à origem dessas calorias. Podes até ver os registos fotográficos de cada refeição servida, que ilustram o contraste entre as duas dietas.
Mais importante ainda é olhar para os resultados. Na dieta ultraprocessada, os participantes consumiram 500 calorias extra por dia e ganharam em média 1 kg de peso corporal. As hormonas responsáveis pelo apetite mantiveram-se em níveis elevados, por comparação com a dieta não processada, o que explica a tendência para comer mais do que o necessário. O ganho de peso pode parecer reduzido, mas é uma diferença significativa num período tão curto.
O estudo completo é uma autêntica preciosidade científica, cuja leitura recomendamos vivamente. As suas conclusões abriram caminho ao reconhecimento real da teoria de Carlos Monteiro e do sistema NOVA como um instrumento válido, com potencial para influenciar políticas públicas na área da nutrição e da indústria alimentar.
[Mais recentemente, Kevin D. Hall concretizou um novo estudo seguindo o mesmo método, mas comparando uma dieta de base vegetal baixa em gordura com uma dieta de base animal e cetogénica (baixa em hidrato de carbono), com resultados (e imagens de menus) igualmente interessantes: embora muito mais rica em hidratos de carbono, a dieta de base vegetal levou a uma ingestão calórica substancialmente mais baixa (entre 550 e 700 calorias por dia inferior à da dieta cetogénica).]
Nos últimos anos sucedem-se os estudos que estabelecem ligações entre o consumo elevado de ultraprocessados e o risco acrescido de uma série de problemas de saúde, incluindo obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, asma, problemas gastrointestinais, depressão e cancro. O que leva forçosamente a uma pergunta: o que vamos fazer quanto a isto?
A importância de influenciar a indústria com políticas públicas
Munidos desta informação, não faltam razões para quem define as políticas públicas na área da alimentação agir. Em Portugal, a Taxação de Bebidas Açucaradas introduzida em 2017 é um exemplo disso, e com resultados relativamente satisfatórios. Há, no entanto, um pormenor a considerar: os fabricantes de bebidas açucaradas estão a reduzir o teor de açúcar mas substituindo-o por adoçantes artificiais – cujos efeitos a longo-prazo ainda não estão suficientemente estudados. Além disso, se o principal problema estiver mais no processamento em si e não tanto nos ingredientes, há o risco de as mudanças nas fórmulas serem pouco mais do que um exercício de maquilhagem.
Entre as acções prioritárias do plano 2022-2030 do Programa Nacional para a Alimentação Saudável está o alargamento deste imposto especial "a outras categorias de alimentos, nomeadamente a alimentos com elevado teor de sal, açúcares e gordura". Resta ver quão ambiciosa ou conservadora será a implementação desta medida. Olhando para o historial de braços-de-ferro anteriores com a indústria alimentar, é difícil acreditar que haja uma reforma real do sistema – mais depressa será dado um pequeno passo na direcção certa. O que não quer dizer que não tenham sido já aplicadas medidas relevantes em Portugal.
No limite, em todo o caso, trata-se de criar condições para adoptarmos colectivamente o mantra "descascar mais, desembalar menos"; de cozinharmos mais refeições de raiz, em vez de agarrarmos qualquer coisa pronta a comer no supermercado ou de cedermos à tentação de encomendar uma qualquer refeição de fast food através do telemóvel.
As bebidas açucaradas têm uma utilidade essencialmente nula para o nosso organismo (não passam de água com açúcar, aditivos e talvez alguma fruta altamente transformada). O mesmo não pode ser dito das refeições ultraprocessadas (lasanhas, hambúrgueres, pizzas, etc.) prontas a comer ou a aquecer, que para muitas pessoas substituem largamente refeições inteiras.
Desta mudança drástica na forma como comemos depende também a disponibilidade (de tempo, energia e dinheiro) que muitas vezes falta àqueles que mais alimentos ultraprocessados consomem – as classes mais baixas – e que podem não ter o conhecimento ou a capacidade para reverter a situação.
Num outro artigo, assinado em conjunto com Deirdre K. Tobias, o mesmo Kevin D. Hall de que falávamos há pouco deixa um alerta: seguir o caminho de pura e simplesmente eliminar estes alimentos poderia ter consequências ainda mais danosas. A alternativa passará antes por apostar na reformulação, melhorando o perfil nutricional destes produtos.
E que impacto ambiental têm os alimentos ultraprocessados?
A discussão sobre a importância do processamento de alimentos centra-se quase sempre na sua conservação. Ou seja, ao processar alimentos frescos, altamente perecíveis, evitamos que sejam desperdiçados. Embora este raciocínio esteja correcto, a realidade está longe de ser tão linear.
Desde logo, o processamento implica uma grande utilização de recursos: a energia necessária em todas as fases de processamento, a água para lavagem de matéria-prima e dos equipamentos utilizados, e por último nas embalagens que protegem estes produtos.
Há uma outra dimensão a considerar. Muitos ingredientes frequentemente associados a elevados impactos ambientais são sobretudo usados pela indústria (além da pecuária). Basta olhar para exemplos como o óleo de palma ou de soja, que muitas vezes encontras na lista de ingredientes destes produtos.
Esta indústria depende, de resto, da intensificação agrícola de um reduzido leque de variedades de plantas e animais, com práticas de desflorestação e de larga utilização de químicos de síntese, com consequências para as emissões de gases com efeito de estufa, a degradação dos solos, a eutrofização dos cursos de água e a perda de biodiversidade, entre outros impactos.
Seria ainda assim errado afirmar que um alimento não processado é sempre mais sustentável do que um ultraprocessado. A prova disso está nos hambúrgueres 100% vegetais. É certo que têm formulações complexas, com ingredientes como proteína de ervilha ou de soja e vários aditivos, e que precisam de ser conservados no frigorífico ou no congelador ao longo do seu tempo de prateleira. Por outro lado, importa responder à pergunta: ao consumir este produto, que outro produto deixa de ser consumido? Se a resposta for um bife ou um hambúrguer de carne, não há dúvidas de que a opção de base vegetal terá uma pegada total inferior – embora também haja preocupações associadas ao uso de monoculturas intensivas.
Mesmo dentro do universo dos ultraprocessados, temos opções com impactos distintos. Apesar de antiga, esta análise comparativa de ciclo de vida entre uma refeição caseira e uma pronta a comer dá-nos pistas que ajudam a tomar decisões mais conscientes. Desde a produção ao consumo, uma refeição ultracongelada que é preparada no forno consome 25 vezes mais energia do que uma refeição equivalente conservada no frigorífico até ser aquecida no microondas – se leste a nossa newsletter sobre o microondas, isto não será absolutamente surpreendente
Também não podemos ignorar o facto de os alimentos ultraprocessados conduzirem por norma a um consumo excessivo. E comer a mais implica não só impactos na nossa saúde, mas também um uso adicional de recursos que sobrecarrega o sistema alimentar enquanto responsável pelas alterações climáticas.
A forma como o próprio sistema alimentar e a sociedade em si estão estruturados faz com que seja incrivelmente difícil fugir aos alimentos ultraprocessados, por muito que queiramos fazê-lo. Entre a ubiquidade destes produtos e as horas que passamos em transportes e no trabalho, tende a sobrar pouca margem de manobra para nos dedicarmos verdadeiramente à cozinha.
É mais relevante a regra do que a excepção. Deste lado, fazemos da regra a preparação de refeições de raiz, com alimentos inteiros, e quase sempre sem embalagens. Mas uma vez por outra também abrimos excepções e fazemos concessões, seja por conveniência ou por prazer. As mais frequentes são com bolachas ou batatas fritas de pacote. Importa é que sejam isso mesmo – excepções.
A informação na palma da mão
Nem sempre é fácil perceber se um alimento é processado ou ultraprocessado, se é tendencialmente mais saudável ou menos saudável, se tem um maior ou menor impacto ambiental. Os rótulos têm muita informação importante, e com um olhar mais atento é possível identificar ingredientes menos comuns, substâncias que não usaríamos na nossa cozinha e aditivos que só servem para tornar o produto mais apelativo (os chamados 'aditivos cosméticos'). Mas o volume de informação que conseguimos extrair do rótulo é limitado.
Para combater a falta de informação surgiu um projecto colaborativo chamado Open Food Facts. É uma base de dados, construída por voluntários, com o objectivo de listar alimentos embalados e fornecer rapidamente ao consumidor informação útil sobre um determinado produto.
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