Antes de entrarem no domínio da alimentação, as calorias tiveram uma outra vida. Em vez de andarem de boca em boca entre nutricionistas e pessoas preocupadas com a sua própria alimentação, era entre físicos e engenheiros que se falava deste conceito.
No princípio, a caloria era uma unidade de medida de energia usada para aferir a eficiência de motores a vapor. Há, na verdade, duas definições – a da caloria grande (kcal, ou quilocaloria) e a da caloria pequena (cal) – que na prática são duas formas de dizer a mesma coisa:
O número de calorias representa a energia necessária para fazer subir em 1ºC a temperatura de 1 kg (ou 1 g) de água, ao nível do mar.
A história do próprio termo 'caloria' é muito mais complexa, com muita confusão de conceitos à mistura. Para simplificar a compreensão vamos manter-nos na definição do parágrafo anterior e na assunção de que kcal e calorias significam o mesmo.
Olhando para esta definição, é fácil esclarecer um aspecto que muitas vezes passa despercebido: as calorias não são substâncias contidas nos alimentos que comemos, mas sim a medida da energia que é gerada dentro do nosso corpo com a digestão desses alimentos – da mesma forma que a queima de carvão ou de gasolina, por exemplo, gera um determinado volume de energia para alimentar um motor.
Esta conclusão lança logo uma questão pertinente. Se cada corpo é um corpo, a energia gerada pelo consumo de um mesmo alimento será também diferente. O mesmo é dizer que há corpos mais ou menos eficientes a produzir energia a partir dos alimentos que comemos. Da mesma forma que há, por exemplo, variações no comprimento do intestino delgado que têm implicações na capacidade de produção de energia e na absorção de nutrientes. De um alimento com 200 calorias, duas pessoas podem extrair quantidades de energia distintas.
Importa então recuar aqui e responder à pergunta inicial: como é que chegámos aos números que hoje vemos nas tabelas nutricionais dos produtos que compramos?
A experiência de Wilbur Olin Atwater
Considerado o pai da investigação moderna em nutrição, este químico norte-americano começou por usar uma bomba calorimétrica para medir as calorias num determinado alimento. Para isso, era posto dentro de um recipiente selado, rodeado por água. O alimento era aquecido até queimar por completo e com base na subida da temperatura da água chegava-se ao número de calorias naquele alimento.
Este método tinha, no entanto, várias limitações quando usado para definir recomendações nutricionais. Desde logo, as reais necessidades de cada indivíduo dependem de variáveis como o sexo, a idade ou o nível de actividade física, por isso não bastava saber quantas calorias havia num alimento. Por outro lado, mais do que saber quanta energia um alimento contém, importava saber quanta energia o nosso corpo consegue extrair desse alimento.
Para responder a este último desafio, Atwater chegou a uma segunda experiência para medir não só a energia presente nos alimentos, mas também a que sobrava depois de esses alimentos terem sido digeridos. Sim, é isso que estás a pensar: Atwater pegou na bomba calorimétrica e fez o mesmo com fezes e urina para calcular a diferença entre a energia ingerida e a que era expelida pelo organismo no fim da digestão.
Odores à parte, o progresso feito na sequência dessa experiência permitiu-lhe estabelecer padrões que ainda hoje são usados nos cálculos por trás das tabelas nutricionais que vemos:
- 1 g de proteína dá-te 4 calorias
- 1 g de gordura dá-te 9 calorias
- 1 g de hidratos de carbono dá-te 4 calorias
O facto de estes números serem amplamente utilizadas no sector alimentar não mascara a relativa fragilidade destas conclusões. Desde logo porque Atwater usou um número bastante limitado de indivíduos nas suas experiências – e todos eles homens (jovens adultos) brancos. Mais, no caso dos hidratos, o cálculo foi feito por subtracção e inclui a parte correspondente à fibra, que obviamente não é assimilada pelo organismo.
Havendo, como já referimos, inúmeras nuances associadas ao corpo de cada um, estes números dificilmente serão representativos e aplicáveis transversalmente a toda a população mundial. Isso não impede que continuem a ser usados globalmente por toda a indústria alimentar, muito mais do que queimar alimentos para medir a sua energia.
Como exemplo desta imprecisão podemos falar de frutos secos – que têm fama de serem bombas calóricas mas passam pelos intestinos sem serem digeridos por completo. Grande parte das calorias (70%) desaparece graças a mecanismos de compensação dietéticos (tal como o facto de os frutos secos nos fazerem sentir mais saciados e com isso ingerirmos menos calorias de outras fontes); 20% são o resultado de uma alteração no metabolismo que faz com que queimemos mais gordura corporal; e 10% corresponde a uma parte que não é absorvida pelo organismo.
Um estudo pôs os participantes a fazer uma dieta com um elevado consumo de amêndoas e pequenas quantidades de outros alimentos, para depois analisar as suas fezes. Com isso descobriram que muitas das partículas das amêndoas tinham passado intactas pelo sistema digestivo, contendo ainda as suas moléculas de gordura. Ou seja, uma parte das calorias provenientes da gordura das amêndoas não será assimilada pelo corpo. Numa experiência semelhante feita com cajus, os participantes absorveram em média menos 16% da energia normalmente encontrada nas tabelas nutricionais, feitas segundo o sistema de Atwater.
Não surpreende por isso que, no meio disto tudo, já tenha sido provado que os frutos secos não levam a um aumento de peso.
O desvio de calorias
Para qualquer número que vejas numa tabela nutricional, é seguro assumir que pode haver um desvio de até 20% no valor real. Ou seja, se um produto diz ter 200 calorias, na realidade pode ter entre 160 ou 240 (sendo mais frequente as marcas puxarem para baixo do que para cima). O videógrafo Casey Neistat convocou dois cientistas para ajudá-lo a analisar alguns produtos que consumia regularmente e chegou à conclusão de que estaria a consumir o equivalente a um hambúrguer do McDonald's por dia sem dar conta disso.
Isto é especialmente verificável em produtos mais processados, mas também pode acontecer com um mesmo alimento cultivado em dois locais diferentes.
Uma batata doce produzida em Portugal será diferente de outra produzida na África do Sul. E nem é preciso pensar em distâncias tão grandes – seguramente haverá diferenças entre o mesmo alimento produzido na zona de Torres Vedras por comparação com a região de Setúbal. Podem ser negligenciáveis, mas existirão.
Outro aspecto a considerar aqui é a porção. Se um pacote de bolachas diz que uma porção (vamos assumir que são três bolachas) tem 150 calorias mas de cada vez que pegamos nele tiramos quatro na verdade estamos a ingerir 200 calorias. Por essa razão, mais vale olhar sempre para os valores por 100 gramas para tirar as nossas conclusões.
Ao longo dos anos, o sistema de Atwater foi sendo apurado, primeiro para considerar a fibra, depois para determinar que há um intervalo de valores no poder calorífico e na digestibilidade de diferentes proteínas, gorduras e hidratos de carbono – levando a desvios (em alguns casos significativos) face ao modelo 4-9-4 de Atwater.
No site do Departamento de Agricultura dos EUA encontras uma base de dados bastante completa onde podes pesquisar por um alimento específico e consultar a sua informação nutricional – incluindo dois valores distintos para as calorias, conforme a versão do sistema de Atwater usada, e o resultado de análises diferentes feitas a um mesmo tipo de alimento. Por exemplo, oito análises a maçã gala resultaram em valores de fibra entre 1,8 g e 2,7 g (por 100 g) e de açúcar entre os 9,28 g e os 14 g.
Em Portugal há uma ferramenta parecida, embora muito menos exaustiva, disponível aqui.
É mesmo uma questão de somar e subtrair?
Quando o assunto é perda de peso, há muito que se instituiu que a equação mais importante é ingerir menos energia (calorias) do que aquela que gastas.
Sabe-se que, em média, cerca de 70% da energia que ingerimos vai directamente para as funções essenciais do organismo. Mesmo que não nos mexêssemos, o corpo continuaria a precisar dela para funcionar devidamente. Depois usamos em média 20% para suportar a actividade física e 10% para a própria digestão. Sim, todo o sistema digestivo (desde a mastigação à absorção e à excreção) exige um volume de energia significativo.
Por falar nisso, há tempos começou a correr a ideia de que alguns alimentos têm "calorias negativas" – no fundo, que a energia dispendida a processá-los seria mais alta do que aquela que assimilamos ao comê-los. Exemplo disso seria o aipo. Um estudo provou que não é verdade, embora não esteja muito longe: uma chávena de aipo cru teria 16 calorias, enquanto o dispêndio de energia para o digerir seria de 14 calorias. O que sobra daqui é a ideia de que – sendo o aipo rico em fibra e em água – pode ser uma solução para quem quer reduzir o aporte calórico mantendo algum nível de saciedade.
É incontornável, ainda assim, falar das estratégias mais eficientes para a manutenção de um peso saudável: comer alimentos o mais perto do seu estado original, em particular vegetais, fruta e cereais integrais (todos eles ricos em fibra), além de leguminosas e frutos secos; limitar o consumo de fritos, carne e produtos açucarados; gerir as porções para evitar excessos; e praticar exercício físico várias vezes por semana.
Vale a pena olhar para o caso de Mark Haub, o professor de nutrição que durante 10 semanas fez uma dieta que consistia essencialmente em comer uma espécie de pãozinho de ló a cada três horas, além de Doritos, Oreos e mais junk food do género, até perfazer 1800 calorias por dia (em vez das 2600 calorias diárias que seriam adequadas às suas características). No fim da experiência tinha perdido cerca de 12 kg, legitimando pelo menos parcialmente a teoria de que a gestão de peso depende muito de somar e subtrair calorias.
A curto prazo esta abordagem funcionou para este indivíduo em específico, embora dificilmente alguém defenderá uma alimentação baseada neste tipo de produtos como sendo saudável. Os potenciais efeitos negativos a longo prazo de uma dieta destas são difíceis de quantificar, uma vez que ninguém as mantém prolongadamente com o propósito de testar os seus impactos.
No limite, sim, o balanço calórico (energia que entra e sai) é muito relevante, mas também importa (e muito) considerar outras variáveis, como os horários a que comes, há quanto tempo tinha sido a última refeição, o estado da tua microbiota, a qualidade e duração do sono, a preparação do alimento (cru, cozinhado – e de que forma) e a composição do próprio alimento (200 calorias de proteína são assimiladas pelo organismo de maneira diferente e a ritmos distintos de 200 calorias de hidratos de carbono, que por sua vez também são diferentes de 200 calorias de gordura).
E há que fazer uma (grande) ressalva quanto ao exercício físico: não é o desporto que vai salvar uma má dieta. Aliás, abundam os estudos que provam os efeitos limitados do exercício físico na perda de peso por comparação com a alimentação. A lógica é simples: o corpo ajusta a sua eficiência energética em função do nível de actividade.
Transpondo isto para a prática: um homem que comece a fazer desporto (corrida, bicicleta, futebol, etc.) e com isso gaste em média 500 calorias por actividade poderá pensar que tem de consumir mais 500 calorias além da sua média diária de 2500 calorias. Se no início isso até será verdade, com o tempo o organismo vai alocar parte do gasto energético a alimentar a actividade física adicional, não havendo um buraco negro de 500 calorias por preencher. Ou seja, as necessidades reais desse homem estarão, na mesma, algures mais próximo das 2500 calorias.
Herman Pontzer, professor de antropologia evolutiva, chegou a essa mesma conclusão ao estudar os Hadza, um grupo indígena de caçadores-recolectores na Tanzânia conhecido pelo estilo de vida muito activo. Pontzer esperava encontrar grandes disparidades face aos humanos sedentários do mundo ocidental, mas deparou-se com números muito semelhantes. Os Hadza terão simplesmente motores mais económicos, que lhes permitem fazer mais com menos energia.
Com isto não se pretende dizer que o exercício físico não vale a pena – vale, e muito, para nos ajudar a ter um corpo (e uma mente) saudável. Mas é pelo que entra (ou não) pela boca que acontece o maior impacto.
As calorias até estão ultrapassadas
Sim, queremos sugerir-te que prestes menos atenção à quantidade de calorias que consomes e mais à qualidade dos alimentos em si. É um passo importante para uma relação mais saudável com a comida – que para lá de fonte de energia deve ser também sinónimo de prazer.
O título acima tem, contudo, uma outra intenção. Talvez já tenhas reparado que, por cá, nas tabelas nutricionais costumam aparecer dois números diferentes – um expresso em (quilo)calorias (kcal), o outro em (quilo)joules (kJ). Porque é que isso acontece? Na prática, é como a diferença entre milhas e quilómetros – alguns países usam um, enquanto a maioria privilegia outro.
Neste caso, as calorias são as milhas e os joules são os quilómetros, uma vez que a esmagadora maioria dos países usa o segundo (aliás, o único que faz parte do Sistema Internacional de Medidas). No entanto, as calorias estão de tal forma enraizadas no discurso sobre nutrição que seria um esforço demasiado grande tentar reeducar toda a gente para usar outros números e medidas.
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